Viagem num comboio que há três anos não existia
09/01/2022 07:24 - Público

Um bispo a descerrar uma placa numa locomotiva, a apresentação de um livro sobre as locomotivas 2600 e uma viagem no Minho num comboio que ressuscitou das cinzas, eis um programa delirante para 300 entusiastas dos caminhos-de-ferro.

Viagem num comboio que há três anos não existia

Expectativa, entusiasmo, alegria, excitação. Eis as sensações de uma pequena multidão de 300 pessoas que, no final de Novembro, na estação de Contumil (Porto), rodeia e fotografa um comboio invulgar no qual vão passar a tarde numa viagem de ida e volta até Valença.

Não é caso para menos. As carruagens são as famosas Schindler, que brilham à luz do Sol de Outono depois de terem sido salvas de um abandono de décadas e recuperadas nas oficinas da CP para voltarem a ser colocadas ao serviço. O ar vintage deste material não deixa ninguém indiferente, nem mesmo aqueles que, não sendo sócios da APAC — Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos-de-Ferro, foram arrastados para este evento por amigos ou familiares. Têm um ar robusto, feitas de muito ferro e aço e nenhum plástico, e um interior com assentos antigos, mas invulgarmente confortáveis, que se podem rodar para ficarem no sentido da marcha do comboio.

Mas o pormenor mais importante é que, além das janelas enormes, que dão uma amplitude maior ao interior, estas podem abrir-se para melhor se apreciar a paisagem, e, no caso de hoje, fotografar e filmar o andamento desta composição que, entretanto — e por ser um comboio especial sem paragens —, já atravessou Ermesinde, São Romão, Lousado, Famalicão, afasta-se dos arredores do Porto e caminha veloz pelo Minho acima.

Para a descrição ficar completa, diga-se que estas carruagens são suíças e vieram para Portugal nos anos 50 do século passado, onde prestaram serviço na linha da Sintra, tendo sido depois deslocados para outras regiões do país e acabado os seus dias no Douro e Minho. Em 2001, a CP transformou em sucata 30 destas carruagens.

Sobraram 19, abandonadas e vandalizadas durante vários anos, até que em 2019 a CP, com uma dramática falta de material circulante para poder fazer face à procura, as recuperou e colocou ao serviço.

À cabeça deste comboio estava uma “rainha” que há três anos jazia, abandonada, numa linha enferrujada do Entroncamento. Para melhor se compreender este título atribuído à locomotiva que reboca as cinco carruagens Schindler desta composição, é preciso recuar umas horas neste evento, ao momento em que o bispo da Diocese do Porto, D. Manuel Linda, descerra uma placa a este veículo de 78 toneladas de ferro perante uma salva de palmas da assistência.

Não houve bênção nem água benta e o cenário em que se move este alto-representante da Igreja Católica não poderia ser mais improvável: uma oficina de comboios. D. Manuel Linda está enquadrado por duas imponentes locomotivas 2600 e, à volta, na imensa nave em que se senta a assistência, podem ver-se duas carruagens de via estreita “napolitanas” (assim chamadas por terem sido construídas em Nápoles antes de virem circular nas linhas do Tua e do Corgo), duas locomotivas a vapor, também de via estreita (uma num estado lastimoso e outra reluzente, recém-recuperada) e ainda duas carruagens antigas de madeira.

Faça-se luz. A placa que o bispo acaba de descerrar reza assim: “Esta locomotiva rebocou o comboio especial onde viajou Sua Santidade o Papa João Paulo II, em 15 de Maio de 1982.”

Nesse dia, que amanheceu nebuloso em todo o território nacional impedindo que o Papa se deslocasse em helicóptero, as autoridades decidiram activar o Plano Bravo, que consistiu em colocar à disposição de Sua Santidade um comboio especial que a CP já tinha preparado em Campolide e que levou João Paulo II até Coimbra, onde celebrou missa no estádio municipal, prosseguindo depois, sempre sobre carris, para Braga.

A recordação deste episódio — que prova que o caminho-de-ferro sempre se cruzou com momentos mais ou menos relevantes da História do país — precedeu a apresentação do livro As Locomotivas Alsthom 2600 da CP — As rainhas da tracção eléctrica em Portugal, da autoria de João Cunha, um apaixonado por comboios e, em particular, por estas máquinas de origem francesa que marcaram a modernidade ferroviária portuguesa na segunda metade do século XX.

Trata-se de um livro enciclopédico, de 400 páginas, profusamente ilustrado e onde se conta detalhadamente e com um rigor ferroviário a história destas máquinas cor de laranja, também designadas “nez cassé” (nariz partido) devido ao invulgar design frontal. Os vidros têm uma inclinação para dentro de 45 graus (para evitar e encadeamento pelo sol ao maquinista) e o “nariz” não é mais do que uma caixa com um sistema de absorção passiva de energia que protege a locomotiva e a sua tripulação em caso de choque frontal.

Estas características foram explicadas por Nelson Oliveira, ex-presidente da APAC e actual director do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF), que falou também na polivalência destas locomotivas na exploração ferroviária, pois rebocam com a mesma facilidade comboios de passageiros e de mercadorias, permitindo uma optimização da sua gestão.

As 2600 foram capa dos livros-horários da CP durante várias décadas, provando que eram a tecnologia de ponta da empresa e porque tinham — têm — uma imagética muito marcante. Nelson Oliveira recordou que até o livro Anita de Comboio tem na capa uma locomotiva desta série.

Para o autor do livro, João Cunha, foi também essa imagem que o deslumbrou quando era miúdo. “Mal dava os primeiros passos, comecei a empurrar os meus pais para a estação mais próxima, que era Santa Apolónia, para ver os comboios e aquelas locomotivas impressionavam-me pela imagem, pela força, pela estética, pela cor laranja e pelo enorme logótipo da CP”, contou ao P2.

Essa paixão pelas 2600 levou-o, já em adulto, a percorrer milhares de quilómetros para as fotografar em vários pontos das linhas por onde circulavam, sobretudo quando soube, em 2011, que a CP iria desafectá-las do serviço. Uma tristeza e um desespero. Uma espécie de querer parar o tempo, de registar as últimas viagens daqueles colossos que viram uma morte prematura quando ainda tinham tantos quilómetros para percorrer.

Nuno Freitas, ex-presidente da CP e agora na pele de um descontraído amigo dos caminhos-de-ferro, é também um fã das 2600, com as quais trabalhou quando em 1996 entrou na EMEF como engenheiro. “Com elas, aprendi a apreciar a simplicidade da boa técnica. Nós ferroviários nunca percebemos a razão pela qual se imobilizaram estas locomotivas que sempre foram vitais para dar robustez a um caminho-de-ferro fiável e que sirva bem as pessoas”, escreve no prefácio do livro de João Cunha.

No debate em que participou com João Cunha e Nelson Oliveira, e seguido atentamente por uma multidão que bebia as palavras dos oradores (sim, estava-se apenas a falar de locomotivas e caminhos-de-ferro...), o ex-presidente da CP explicou por que decidiu ir buscar estas máquinas que estavam abandonadas ao ar livre, sem qualquer protecção nem manutenção mínima, e a surpreendente facilidade com que foram recuperadas.

Na altura, perante a necessidade de ter material eléctrico, a CP ou pedia a devolução de cinco locomotivas 5600 que tinha (e ainda tem) alugadas à Medway e pelas quais cobra 1,2 milhões de euros anuais ou recuperava as 21 locomotivas 2600. “Fomos buscá-las ao Entroncamento e com a receita de um ano das 5600, pagámos a recuperação de praticamente todas as 2600”, explicou o gestor.

Não há só paixão e emoção neste evento dos amigos dos caminhos-de-ferro. Também há razão, a frieza dos números e actos de gestão consequentes. Pedro Moreira, que sucedeu a Nuno Freitas na presidência da CP, foi muito claro: “Se não as tivéssemos recuperado, neste momento estaríamos a operar na linha do Minho com material diesel.” No que seria uma irracionalidade, posto que a totalidade da linha do Minho foi electrificada em Abril deste ano e o risco era ter material a gasóleo a circular debaixo da catenária.

Não aconteceu e a prova disso é este passeio num dia que parece de Primavera pela linha do Minho, onde todos os comboios com que nos cruzamos são eléctricos. A 2611 porta-se bem e reboca, cumprindo o horário, as cinco carruagens carregadas de passageiros felizes que não se sentem incomodados com os solavancos das Schindlers ao passar pelas agulhas ou nas curvas mais apertadas, nem pelo elevado grau de ruído que as janelas abertas potencia. Há sorrisos, reencontros, conversas cruzadas, mas sobretudo muita animação e uma grande fatia dos viajantes a espreitar pelas janelas com a parafernália electrónica a registar o momento.

Como se o comboio fosse seu

José Pedro Leitão, dos Deolinda, é um dos passageiros. Sócio da APAC desde 2015, não resistiu a este programa que foi a apresentação do livro e poder viajar até Valença numas Schindler rebocadas por uma 2600. “Irresistível”, diz. “Este gosto veio do meu pai, que tinha comboios em miniatura e eu próprio comecei a fazer colecção. Gosto do modelismo ferroviário, mas também gosto dos comboios grandes — gosto de viajar de comboio. Estudei em Lisboa e ia e vinha sempre de comboio.”

Bruno Palma, 53 anos, veio de Lisboa e é a primeira vez que participa num evento da APAC. “Confesso-me deslumbrado. Adorei a visita às oficinas, fiz montes de fotografias e estou a partilhá-las com os amigos e a família. A viagem é fantástica, pode-se ir à janela e tenho amigos que até me chamavam maluquinho dos comboios e agora estão cheios de inveja porque também gostavam de aqui estar.” Este empresário diz que, para além da paixão, os comboios devem ser levados muito a sério porque são a solução de futuro para a mobilidade sustentável, lamentando que Portugal não esteja tão desenvolvido neste sector como o resto da Europa.

José Monteiro Ferraz sabe de cor o nome de todas as estações e apeadeiros do país, inclusive das linhas que já fecharam. E até as estações que já não existem não escapam à cantilena com que as recita. Num ápice, e para espanto dos vizinhos da carruagem, José despejou numa assentada os nomes das estações e apeadeiros das linhas do Oeste, do Sabor, do Tua, do Algarve e do ramal de Mora.

Numa das carruagens, concentrou-se um estrepitoso grupo de ferroviários. São operários, especialistas, contramestres, engenheiros, pessoal ligado à recuperação e manutenção do material circulante. Sentem-se em casa, como se o comboio fosse seu. Afinal, foram eles que fizeram renascer das cinzas carruagens e locomotivas que estavam condenadas a apodrecer em linhas de resguardo e que hoje estão a transportar milhares de passageiros por dia. São mal pagos. Nesse particular (que não é displicente), a CP é uma má patroa. O próprio ministro da tutela o reconhece. “Os trabalhadores da manutenção da CP ganham pouco e o país tem de resolver isto”, disse Pedro Nuno Santos à Lusa em Setembro passado.

Só o reconhecimento social pelo seu trabalho e uma boa relação com uma administração que lhes é próxima tem evitado mais conflitos laborais e greves. E nas estruturas intermédias da CP há quem saiba usar as redes sociais para projectar e valorizar o trabalho desta gente anónima que hoje, de cerveja “mini” na mão, festeja esta viagem que há três anos não seria possível realizar porque estes veículos estavam encostados.

A passagem pela ponte metálica de Viana do Castelo é um dos pontos altos da viagem. Construída em 1878 pela Casa Eiffel, é uma ponte metálica rodoferroviária, na qual os comboios passam pelo tabuleiro inferior e os carros pelo superior. Depois de Viana, a beleza paisagística aumenta devido à proximidade com o mar e depois com o rio Minho. Afife, Âncora, Caminha, Vila Nova de Cerveira, S. Pedro da Torre. O comboio passa veloz, sem parar. Já Almeida Garret se queixava que a velocidade do comboio o não deixava apreciar devidamente a paisagem. E era um ronceiro comboio a vapor do séc. XIX. Hoje, a 120 km/h, este comboio especial parece, na realidade, bem mais veloz. Não tem filtros: material antigo, ferro contra ferro, janelas abertas. Estes passageiros gostam disso. Nada que ver com as assépticas composições modernas que deslizam suave e silenciosamente nos carris.

Valença recebe o comboio n.º 20521 às 15h50 com alguns trainspoters na estação a fotografar as carruagens coloridas. A manobra da locomotiva, que será atrelada no outro extremo da composição para a viagem de regresso, é também devidamente registada por dezenas de câmaras. Às 16h05, e agora com o número 20522, o comboio de aniversário da APAC regressa ao Porto. Só efectua paragens em Viana do Castelo e Barroselas e numa parte do trajecto foi bafejado por um magnífico pôr-do-sol no Atlântico. Chegou a Campanhã às 18h05.

Se é analógica, é eterna

As locomotivas 2600 foram encomendadas pela CP à empresa francesa Alsthom, tendo as primeiras chegado a Portugal em 1974. De um total de 21 máquinas, 12 foram importadas e nove foram construídas na Amadora, na então Sorefame, sob licença da multinacional francesa (que hoje se chama Alstom).

Rebocaram os serviços Premium da CP, nomeadamente os Alfas dos anos 1980 entre Lisboa e o Porto, bem como os Intercidades e os internacionais Sud Expresso e Lusitânia Expresso. Mas, devido à sua polivalência, estiveram também afectas ao transporte de mercadorias.

Encostadas em 2012 e renascidas em 2019, das 21 locomotivas daquela série, dez já estão recuperadas e ao serviço, devendo as restantes ser injectadas na operação nos próximos dois anos. Têm futuro. “Sendo uma locomotiva analógica, é uma locomotiva eterna. A CP, se quiser, pode tê-las por mais 50 anos”, diz Nuno Freitas, que sublinha os baixos custos operacionais e a quase ausência de problemas de obsolescência deste material. “Podem ir para além da linha do Norte e circular em todas as vias que forem electrificadas, no Douro, nas Beiras, em Sines, no Algarve, no Oeste”, conclui.