Onde os comboios passam mas não param
16/10/2022 17:37 - Público

Populações do Alentejo e da serra algarvia estão há dez anos a ver passar os comboios.

Onde os comboios passam mas não param

“É o Estado... o Estado. A culpa é do Estado.” O homem depenica um cacho de uvas e murmura a palavra Estado com uma raiva incontida. Estamos na estação de Luzianes Gare, no concelho de Odemira, um edifício bem preservado, ladeado de plataformas em bom estado, com bancos para as pessoas se sentarem e uma infra-estrutura ferroviária moderna onde pontifica uma linha electrificada, agulhas comandadas à distância, sinais electrónicos, uma torre de telecomunicações. Uma ilha de tecnologia e de modernidade no Alentejo profundo, uma estação no meio de uma povoação que deve o seu nome à existência do caminho-de-ferro: Luzianes Gare.

No entanto, ali não se pode apanhar o comboio.

Para ir ver a sua filha ao Pinhal Novo, Adélia Mestre, de 82 anos, paga 15 euros a um táxi para a levar a Santa Clara, onde apanha o Intercidades pelo qual paga 6,50 euros. A estação de Santa Clara fica 12 kms a sul de Luzianes e Pinhal Novo fica a norte. Quer isto dizer que, pouco depois de chegar a Santa Clara, está novamente a caminho de Luzianes, onde o comboio atravessa a aldeia, mas não pára.

“É por isso que eu não posso ir muitas vezes ver a minha filha. Só de táxi são 30 euros para ir e vir”, diz Adélia, que, com a reforma e a pensão de viuvez, recebe 513 euros por mês.

A “camioneta da carreira” não é solução. Só há duas por dia para Santa Clara e os horários não estão ajustados aos dos comboios. Fora do período escolar, Luzianes só tem autocarro três vezes por semana.

Teresa Bernardino, presidente da junta de freguesia, já vai no terceiro mandato e tem acompanhado a frustração dos seus fregueses face à intransigência dos governos e da CP que insistem em deixar a terra abandonada. Mostra um livro de um investigador local que explica que Luzianes Gare deve o seu nome à chegada do caminho-de-ferro em 1889. É o ponto da linha do Sul (Lisboa-Algarve) que fica mais próximo de Odemira, hoje a 25 minutos de carro por uma má estrada. No próprio brasão da freguesia vê-se o perfil longitudinal de dois carris, símbolo da ligação à ferrovia.

“Fizemos manifestações. Juntaram-se a nós os de Pereiras Gare. Fizemos abaixo-assinados. Escrevemos à CP e ao Governo”. A autarca conta que não têm ficado de braços parados e folheia um dossier onde pontuam mails e cartas da CP e da Assembleia da República – Bruno Dias e João Ferreira, deputados do PCP, têm sido bons aliados da causa.

“As pessoas daqui e de Pereiras têm de ir a Santa Clara Sabóia apanhar o comboio, mas a estação lá fica a três quilómetros da aldeia, enquanto aqui o comboio parava mesmo no meio da povoação”, diz a autarca.

Na sede da junta, verdadeiro epicentro da aldeia que tem 372 habitantes, todos lamentam o desaparecimento do comboio. É frustrante vê-los passar várias vezes por dia, a atravessar a povoação e ter de fazer 11 quilómetros para os apanhar. Às vezes, até param na estação para cruzar com outros comboios. Mas não fazem serviço de passageiros.

Rumamos à estação de Santa Clara Sabóia, um verdadeiro complexo ferroviário no coração da serra, agora com casas abandonadas e destruídas. Sobra o núcleo principal da estação, que se encontra em bom estado e onde três passageiros aguardam o Intercidades de Lisboa. Dimas Rodrigues, taxista, diz que ao fim do dia e de manhã a estação tem muito movimento. No seu táxi transporta gente para Aljezur, S. Teotónio, Almograve, Odemira, Vila Nova de Milfontes. Aquando do Festival Sudoeste, é também aqui que ocorrem centenas de jovens que enchem os comboios.

O taxista aponta falhas na estação: as plataformas são demasiado curtas para a extensão dos comboios, como pouco depois pudemos comprovar quando chega o Intercidades e deixa duas carruagens de fora. “Há pessoas que acabam a descer da carruagem directamente para as pedras [balastro da via férrea]”, conta Dimas Rodrigues.

Como a estação não está guarnecida, a venda de bilhetes é feita a bordo. Quem não compra título de transporte na Internet – e a população envelhecida do Baixo Alentejo não é propriamente letrada nessa competência – acaba muitas vezes por viajar à borla. “Já viajei no Alfa sem pagar”, conta uma das passageiras que aguardava o Intercidades para ir para Loulé. Dimas Rodrigues corrobora: no Verão, quando os comboios andam cheios, há muita gente a embarcar ali que não paga bilhete.

A ver passar comboios

Foi há dez anos, em Dezembro de 2011, que a CP deixou de servir todas as estações e apeadeiros da linha do Sul quando acabou com o serviço regional entre Pinhal Novo e Tunes.

De uma assentada, Alcácer do Sal, Canal Caveira, Azinheira de Barros, Alvalade, Amoreiras, Luzianes, Santa Clara-Sabóia, Pereiras e S. Marcos da Serra ficaram sem comboios. E até a cidade de Setúbal perdeu o Intercidades para o Algarve, passando os sadinos a ter de o apanhar no Pinhal Novo.

A troika tinha chegado a Portugal em Abril desse ano e sucediam-se medidas de contenção em todas as áreas. Na ferrovia, fecharam-se linhas e serviços. A CP argumentou que a mobilidade das zonas onde os comboios iriam deixar de parar não ficaria prejudicada porque “existe alternativa rodoviária adequada às necessidades da população”. E assegurava que esta medida permitira poupar mais de dois milhões de euros por ano à empresa. No entanto, a CP nunca explicou como calculou esse valor.

Sobre a “alternativa rodoviária”, estamos conversados. Em Pereiras Gare, terra de 200 habitantes que também deve o seu nome à chegada do caminho-de-ferro em finais do séc. XIX, só há autocarros três vezes por semana fora do período escolar e nos outros meses não há ligações aos comboios em Santa Clara-Sabóia.

Esta estação também tinha ficado a ver passar os comboios, mas algum tempo depois a CP recuou e passou a servi-la com os Intercidades e até com um Alfa Pendular em cada sentido. É que a medida anterior era demasiado radical – Odemira, o maior concelho do país, ficava sem uma única estação servida pelo comboio.

“As pessoas aqui de Pereiras vão a Santa Clara de carro ou de táxi para apanhar o comboio”, conta Maria Guerreiro, funcionária da junta de freguesia. São 15 quilómetros e 20 minutos de carro para quem conhece bem a pequena e sinuosa estrada. Curiosamente, quando havia comboio, não era Lisboa, mas sim o Algarve que gerava mais atractividade. Maria Guerreiro conta que as pessoas até iam de comboio às compras a Messines e às consultas médicas a Faro.

“Quando o meu filho estava a estudar em Faro, eu ia levá-lo ao comboio a Santa Clara e passado um bocado ele passava aqui em frente.” O apeadeiro de Pereiras Gare está igualmente bem conservado. Os assentos sob os abrigos de metal permitem aos idosos ver passar os comboios. O edifício, um rés-de-chão bem cuidado, é agora a sede da associação de caçadores.

“A estação foi arranjada e depois o comboio deixou de parar”, diz Maria Miguel, que vai à junta buscar a correspondência (os CTT já não fazem distribuição postal ao domicílio). Ela e o marido dividem a sua vida entre Faro e Pereiras. “Antes, vínhamos várias vezes de comboio. Demorava-se uma hora e tal. Agora, temos de vir de carro.”

A única voz dissonante ouve-se num dos dois cafés da terra. “Parar aqui o comboio para quê? Isto são meia dúzia de gatos-pingados. A Rodoviária aqui morre de fome. A câmara nem devia financiar a Rodoviária. Os táxis também não são financiados. Hoje toda a gente tem carro. Mesmo os idosos têm um filho ou um neto que tem carro. As pessoas aqui vão uma vez por ano a Lisboa. Olhe, esse comboio servia para os gajos que trabalhavam na CP e moravam no Barreiro virem aqui buscar as coisas à horta. Vinham com o saco vazio e iam com o saco cheio. Saía mais barato que ir ao supermercado. Ninguém quer enfiar-se num comboio que pára em todas as estações. O meu nome? Não, que eu cá sou do André Ventura e não digo o nome. Você é jornalista. Assine com o seu nome.” Estação renovada e deserta

De Pereiras a S. Marcos da Serra são mais 13 quilómetros de estrada municipal cheia de curvas. Chegamos ao Algarve, mas há quem pense que S. Marcos da Serra (concelho de Silves) ainda é Baixo Alentejo. A paisagem serrana não mudou e a orografia mal permite que os comboios circulem a 80km/h. A linha do Sul foi modernizada em 2004, mas só houve aumentos de velocidade entre Lisboa e Torre Vã (concelho de Ourique). A travessia da serra faz-se devagar e o próprio Alfa Pendular não excede por estas bandas os 90km/h.

É por isso que os comboios não passam velozes em S. Marcos da Serra. Arrastam-se pela linha férrea que passa mesmo encostada à aldeia. A estação é surpreendente e merece uma visita turística. Está um brinquinho! Bem pintada, recuperada, desde o edifício dos passageiros ao depósito da água (que abastecia as locomotivas), ao cais das mercadorias e aos gradeamentos que a circundam. O relógio na plataforma dá as horas a passageiros inexistentes e quem ali passa dificilmente acredita que a estação não tem serviço comercial. Pior: também ali, às vezes, os comboios param. Mas só para cruzar.

Em 2017, por proposta do BE, e em 2018, por proposta do PCP, foram aprovadas resoluções na Assembleia da República para a reposição da paragem dos comboios em S. Marcos da Serra. O Governo, ou a CP, ignorou-as.

O presidente da junta de freguesia, Luís Cabrita, conta que ainda há poucos meses mandou um e-mail à CP para pedir que os comboios parem na sua terra, mas não recebeu qualquer resposta. Os seus fregueses continuam, assim, a ir apanhar o Expresso a Messines ou às Ferreiras (Albufeira) nas suas deslocações para Lisboa. Quem quer ir de comboio também terá de ir de carro para Messines ou Tunes. Ir de transporte público está fora de questão: S. Marcos da Serra só é servida por um autocarro por dia em cada sentido, diz Luís Cabrita.

“E só há um táxi para toda a povoação”, diz Maria Elvira Guerreiro, que vive em Armação de Pêra, mas é natural desta aldeia. “Para poderem apanhar o comboio em Messines, os idosos recorrem a quem tem viatura e os mais novos – que são poucos – já têm o seu carro.”

Neste caso, os 17 quilómetros de S. Marcos da Serra a Messines são fáceis de fazer. O IC1 liga as duas localidades em 15 minutos, ao contrário dos casos anteriores em que os percursos são feitos por estradas sinuosas. Mas é difícil explicar às pessoas, sobretudo idosos, por que têm de pagar um táxi para ir apanhar um comboio a uma estação quando a têm à porta de casa.