Perdão de dívida da CP pode ter de passar por Bruxelas
21/12/2021 06:02 - Público
Saneamento da dívida histórica da CP, previsto no OE 2022 e agora adiado, é uma operação que constitui um auxílio de Estado, exigindo por isso um pedido de aprovação a Bruxelas, ao estilo do que aconteceu com a TAP, defende especialista.
Se o próximo Governo quiser insistir na intenção, já presente na proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2022 que foi chumbada pelo Parlamento, de limpar a dívida da CP - Comboios de Portugal ao Estado, no valor de 1800 milhões de euros, deveria notificar primeiro a Comissão Europeia para que esta avalie de esse auxílio do Estado pode ser aprovado.
O alerta é dado por Nuno Cunha Rodrigues, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e especialista em Direito da União Europeia, num artigo científico em que analisa de que forma é que uma operação de saneamento da dívida histórica da CP pode vir a ser tratada à luz do regime dos auxílios de Estado que vigora na União Europeia.
A primeira questão que é colocada no artigo é a de saber se a anulação de uma dívida da dimensão daquela que tem a CP representa ou não uma ajuda do Estado. É precisamente da resposta a esta questão que depende depois a necessidade de notificar a Comissão Europeia. Se estamos perante uma ajuda do Estado, a notificação é necessária. Se não, ela pode ser dispensada.
A conclusão do artigo é clara. “A Comissão deve ser obrigatoriamente notificada antes da realização da operação”, é escrito, assinalando-se mesmo que “a questão que se coloca não é a de saber se estamos face a um auxílio de Estado – o que, claramente, sucede – mas antes a de saber se a Comissão Europeia autorizará este auxílio”.
Em declarações ao PÚBLICO, Nuno Cunha Rodrigues explica que, um perdão de dívida da CP, não só tem características diferentes das indemnizações compensatórias que o Estado paga regularmente à empresa em cumprimento do contracto de serviço público, como tem uma dimensão completamente diferente que “torna evidente que está perante um auxílio de Estado”.
Na proposta de Orçamento do Estado para 2022 apresentada em Outubro e chumbada pelo Parlamento em Novembro, o Governo decidiu incluir um perdão de dívida de 1800 milhões de euros. Não foi feita na altura qualquer notificação à Comissão Europeia e não foram dados sinais de que se pretendia realizar essa notificação, à semelhança do que aconteceu, por exemplo, com a mais recente injecção de capital na CGD ou com a ajuda dada à TAP (que ainda está a ser analisada).
Em resposta às questões do PÚBLICO, fonte oficial da Comissão Europeia limitou-se a afirmar que “como sempre, é responsabilidade do Estado membro avaliar se uma medida envolve uma ajuda de Estado que precise de ser notificada à Comissão para a sua avaliação e aprovação”.
O PÚBLICO enviou questões sobre esta matéria ao Ministério das Finanças e ao Ministério das Infraestruturas, mas não obteve qualquer resposta.
No artigo, Nuno Cunha Rodrigues analisa depois se, feita a notificação a Bruxelas, o Governo teria argumentos suficientes para garantir a aprovação da operação de saneamento de dívida. Para o especialista, uma aprovação por parte da Comissão Europeia “não é líquida, mas há bons argumentos que podem ser utilizados”.
De facto, como boa notícia para Portugal, o artigo assinala que “há diversos exemplos, em múltiplos Estados-membros, de operações que envolveram a absorção/anulação da dívida histórica do operador incumbente ferroviário (público), as quais, sendo consideradas como auxílios de Estado, foram apreciadas e autorizadas pela Comissão Europeia”.
E, para que isso aconteça também no caso da CP, há várias justificações que podem vir a ser apresentadas pelo Estado portugue?s para justificar a concessa?o do auxi?lio. Para além das autorizações anteriormente concedidas pela Comissão Europeia em casos similares, Portugal pode apresentar como argumento, tal como o fez recentemente a Grécia, o facto de a empresa ter enfrentado sérias dificuldades durante a crise, não podendo deixar de prestar o serviço dada a “releva?ncia vital de que os caminhos-de-ferro se revestem para a populac?a?o em termos de mobilidade no territo?rio nacional”.
Depois, outro argumento relevante pode ser “a circunsta?ncia de a di?vida em causa ser histo?rica e decorrer, em grande medida, de na?o ter sido paga a totalidade das indemnizac?o?es compensato?rias a? CP, pelo Estado Portugue?s”. Quanto mais antiga for a dívida, aliás, mais facilmente será aceite o seu saneamento, principalmente se ela for referente ao período de tempo anterior às diversas fases de liberalização do mercado ferroviário na UE e, especificamente, em Portugal.
O artigo assinala ainda que o facto de “ter sido celebrado, em finais de 2019, um contrato de concessa?o de servic?o pu?blico entre o Estado Portugue?s e a CP que define, com clareza, as indemnizac?o?es compensato?rias a atribuir a esta empresa”, pode ser uma ajuda para o caso português. Mas assinala que, em qualquer caso, será necessário a CP apresentar um plano de reestruturac?a?o que garanta que “o cancelamento da di?vida histo?rica ira? assegurar a viabilidade econo?mico-financeira da empresa”, algo que teve também de ser ser feito nos casos da CGD e da TAP.
A questão da notificação ou não à Comissão Europeia de um perdão da dívida histórica da CP irá colocar-se agora ao Governo que sair das próximas eleições. Com o chumbo do OE, a intenção do ministro das Infraestruturas de efectuar o perdão de dívida caiu para já por terra, como admitiu o próprio ao PÚBLICO no passado mês de Novembro. “Eu achei que sim [que ainda se poderia avançar com a operação], mas a forma de o fazer escolhida pelas Finanças, que era transformar a dívida em aumento de capital do Estado, precisa de estar inscrita no Orçamento do Estado”, disse Pedro Nuno Santos.
Para Nuno Cunha Rodrigues, contudo, o facto de a operação estar agora suspensa, não impediria que se começasse desde já a preparar a notificação a fazer a Bruxelas, garantindo uma argumentação e um plano de reestruturação o mais completas possíveis.