Perdão de dívida da CP fica sem efeito com chumbo do OE 2022
13/11/2021 06:34 - Público
O ministro Pedro Nuno Santos revela ao PÚBLICO que a medida não avança devido à “forma escolhida pelas Finanças, que era transformar a dívida em aumento de capital do Estado”, o que não é possível devido à ausência de o OE aprovado.
O chumbo do Orçamento do Estado para 2022 foi fatal para as finanças da CP, empresa que, pela primeira vez em décadas, esteve prestes a ver saneada grande parte da sua dívida histórica, que ronda os 2,1 mil milhões de euros. O Orçamento previa uma quantia de cerca de 1800 milhões de euros para a transportadora pública que representava na prática uma limpeza, no seu balanço, da dívida ao Tesouro, que vale actualmente 1755 milhões de euros.
O ministro das Infraestruturas e Habitação, Pedro Nuno Santos, ainda achou que o Governo poderia resolver este assunto, mas, em declarações ao PÚBLICO, reconhece que seria “muito difícil”. “Eu achei que sim, mas a forma de o fazer escolhida pelas Finanças, que era transformar a dívida em aumento de capital do Estado, precisa de estar inscrita no Orçamento do Estado”, disse, explicando que o problema não é o facto de o Governo estar em gestão, mas sim a falta de um Orçamento do Estado.
O ministro das Finanças João Leão já havia explicado sobre esta operação, poucos dias depois da apresentação do OE 2022, que “nas actuais regras [europeias] conseguimos enquadrar a redução da dívida [da CP] como noutros anos. Pretendemos continuar nessa trajectória, através de um aumento de capital”.
Para a CP, trata-se de um “naufrágio à vista do porto”, até porque esta solução não teria impacto nas contas públicas uma vez que a dívida da empresa já está consolidada no Estado.
A transportadora pública terá, assim, de se contentar este ano apenas com uma dotação orçamental adicional de 80,9 milhões para a compensar dos prejuízos causados pela pandemia em 2020, quando manteve grande parte da operação em funcionamento apesar da procura residual. Um valor que é o dobro do que já estava previsto ao abrigo do contrato de serviço público com o Estado. Uma dívida histórica
A dívida histórica de 2,1 mil milhões é, na prática, uma dívida do caminho-de-ferro português, posto que veio a engrossar durante todo o século XX. Deve-se, essencialmente, ao facto de a empresa ter um accionista que sempre a obrigou a operar com prejuízos para prestar serviço público sem as devidas indemnizações financeiras.
Durante décadas a empresa foi tratada como uma “secretaria-geral” do Estado, transportando inúmeras categorias sócio-profissionais gratuitamente ou com descontos (militares dos três ramos das forças armadas, polícias, guardas republicanos, guardas fiscais, magistrados, sapadores bombeiros e funcionários públicos em serviço com uma requisição de deslocação) sem que os respectivos ministérios a compensassem dessas viagens.
Quando, nos finais dos anos 80 do século passado se encerraram milhares de quilómetros de linhas, sobretudo no Alentejo e em Trás-os-Montes com o argumento da sua exploração deficitária, o impacto na redução da dívida da empresa foi nulo, dado que o seu valor continuou sempre a aumentar.
Radiografia da dívida
BEI: 32,5 milhões
Os empréstimos ao BEI foram contraídos para a compra e modernização de material circulante, sendo que o banco só financiava até 50% dos projectos de aquisição. Como a última aquisição de novos comboios foi há 20 anos, é normal que seja esta uma das fatias mais pequenas do passivo da CP, sendo o que resta de uma dívida história que ainda há sete anos era 267,5 milhões de euros. A entrada da CP, em 2015, no perímetro de consolidação do Orçamento do Estado explica essa redução, que foi feita através de dotações de capital e de empréstimos (a taxas de juro mais baixas) por parte do accionista.
Eurofima: 150 milhões
O mesmo acontece com a dívida à Eurofima que ainda em 2015 era de 325 milhões e hoje está em metade. A Eurofima – Sociedade Europeia para o Financiamento de Material Ferroviário é uma empresa composta por dezenas de companhias de caminhos-de-ferro europeias com o aval dos estados nacionais. Tem sede na Suíça e, sem surpresa, a SNCF e a DB detêm 45,2% do seu capital. A CP detém 2%.
Apesar do nome, a finalidade dos empréstimos pode não ser necessariamente para a compra de material circulante, mas também para satisfazer necessidades gerais das empresas, como foi o caso da CP durante vários anos.
A dívida à Eurofima é pouco penalizante, tal como, aliás, a do BEI. As taxas de juros são muito próximas das da Euribor, rondando actualmente os 0%.
Obrigações: 200 milhões
Para colmatar a falta de indemnizações compensatórias que permitissem cobrir os prejuízos de exploração do serviço público, a empresa recorreu a um empréstimo obrigacionista que hoje representa uma dívida de 200 milhões de euros. Fê-lo em Março de 2010, através do Deutsche Bank, mas não é possível saber quem está a ganhar dinheiro com a dívida da CP porque as obrigações estão dispersas por vários investidores.
Esta é a parcela da dívida com taxas de juros mais penalizadores, em torno dos 5%.
Tesouro: 1755 milhões
A dívida à DGTF tem vindo a aumentar à medida que o accionista realiza dotações de capital à CP, no que só tem sido possível desde que a empresa entrou no perímetro de consolidação do Orçamento de Estado. Representa 84% do total da dívida histórica da CP e era precisamente esta parcela que o Governo tencionava “limpar” do passivo da empresa.
O saneamento desta dívida reduziria de 100 para 75 milhões os encargos financeiros anuais da CP. Um valor gerível, mesmo num cenário de liberalização em que a empresa venha a concorrer com privados e, sobretudo, tendo em conta que há seis anos os encargos eram da ordem dos 200 milhões de euros por ano.
Em 1997, durante o governo de António Guterres e numa época de raro crescimento da economia portuguesa, a CP teve um alívio das suas contas através de uma operação inédita: um aumento de capital em numerário de 60,5 milhões de contos (302 milhões de euros) e através da entrega de acções da EDP no valor de 91 milhões de contos (454 milhões de euros). Nesse ano, a empresa beneficiou de 119 milhões de contos (593,4 milhões de euros) de dividendos e 115,4 milhões de contos (575 milhões de euros) de proveitos pela venda das acções.
Foi sol de pouca dura. A dívida continuou a agravar-se. O motivo era o mesmo de sempre: o accionista fingia que não havia dívida a afectar o equilíbrio das contas públicas e dizia aos gestores para irem aos bancos contrair dívida com o aval do Estado.
Isto durou décadas, independentemente dos governos, e não acontecia só com a CP. As outras empresas públicas de transportes tinham o mesmo tratamento, o que fez com que no princípio deste século a dívida total destas empresas ultrapassasse os 15 mil milhões de euros.
José Benoliel, que foi presidente da CP entre 2010 e 2013, diz que nunca encontrou evidências de má gestão, contrariando uma crítica muito comum à condução das empresas públicas. “Não vi excesso de custos, nem ineficiências de gestão. Os rácios eram idênticos aos de outras empresas tidas como bem geridas. O que acontecia era muito simples: subfinanciamento e incumprimento permanente do Estado perante uma empresa que era obrigada a operar onde não havia procura e a preços abaixo dos custos de produção”.
A vinda da troika impôs que as contas da CP passassem para o perímetro orçamental do Estado em 2015. Nessa altura a dívida era de 4,1 mil milhões de euros. Sucessivas dotações de capital fizeram baixá-la para os 2,1 mil milhões. com Luís Villalobos