Os comboios europeus têm um problema de comunicação
28/11/2021 06:30 - Público

Há mais de 800 regras diferentes, em todos os países da UE. Os maquinistas têm de obter nível B1 na língua dos países estrangeiros em que conduzem. Os manuais técnicos têm de ser impressos em 24 línguas. A circulação ferroviária europeia é uma Torre de Babel.

Os comboios europeus têm um problema de comunicação

Josef Doppelbauer, o chefe da Agência Ferroviária Europeia (ERA), pode explicar-nos por que razão quase tudo, a começar pelos regulamentos técnicos, é mais nacional que europeu. Em 2016, a agência, com sede em Valenciennes, no Norte de França, decidiu elaborar um inventário de todas as regras nacionais para o transporte ferroviário europeu. O resultado foi um catálogo com 14.312 entradas.

Este crescimento descontrolado de regras nacionais foi algo a que a agência de Doppelbauer teve de assistir impotente, durante muito tempo. E só mudou com o chamado “quarto pacote ferroviário da UE”, em 2016. A lei da UE dá à ERA o poder de sancionar os Estados-membros que se opõem à uniformização do transporte ferroviário. “Antes do pacote ferroviário, não tínhamos dentes”, explica Doppelbauer. “Agora temos, pelo menos, dentes de bebé.” É por isso que ainda existem 868 regras. Mas entre elas, ainda há muitas inaceitáveis, diz Doppelbauer. “O nosso objectivo é ter o menor número possível de regras nacionais no catálogo final.”

Algumas até podem fazer os leitores sorrir, como a harmonização dos diferentes sistemas nacionais de sinalização e controlo. Desde 2007, a UE tem financiado o desenvolvimento do sistema europeu comum ERTMS com quase quatro mil milhões de euros. A Comissão chama ao sistema “a espinha dorsal do futuro caminho-de-ferro digital”. A esperança é que, se os comboios e os sistemas de controlo falarem a mesma língua em todo o lado, isso facilitará o tráfego transfronteiriço. Mas o projecto está a vacilar muito. Um comboio Eurostar a circular de Londres para Amesterdão ainda precisa de nove sistemas de segurança diferentes.

Muitos países instalaram também diferentes versões do ERTMS, que custa 250 mil euros por locomotiva. Os três principais actores industriais — a francesa Alstom, a alemã Siemens, a japonesa Hitachi — fabricaram três modelos diferentes.

A ERA identificou mais de 50 chamados “dialectos”, que são muitas vezes incompatíveis. No pior caso, existe o risco de colisão de um comboio, avisa Doppelbauer, acrescentando: “Estamos também no processo de fazer aqui o nosso caminho através da selva.” Doppelbauer diz que isto se deve ao facto de os Estados da UE não terem tido vontade política durante anos. “Todos cozinharam a sua própria sopa”, acusa. Isso só agora está a mudar, mas muito lentamente.

Língua comum

Não existem barreiras linguísticas apenas entre o comboio e o sistema de controlo. O maquinista de locomotivas Guido Maaß pode explicar-nos esta versão sobre carris de uma Torre de Babel. Ele conduz comboios de mercadorias de Oberhausen para Roterdão há dois anos. Mas teve de voltar à escola. Ao contrário do que acontece no tráfego aéreo, não existe uma linguagem comum no sector ferroviário. Em vez disso, muitos estados da UE exigem que os maquinistas dos comboios tenham um domínio da língua local — pelo menos ao nível B1.

Isto pode levar ao fim da ligação Entroncamento-Badajoz. Por enquanto, ao maquinista que conduz a Allan do Entroncamento até àquela cidade espanhola, não lhe é exigido o nível B1 de espanhol. Mas em breve isso deverá acontecer, ainda que o percurso a percorrer entre o ponto quilómetro fronteiriço e a estação de Badajoz seja de apenas 5,4 quilómetros. A CP pondera encurtar o percurso daquela ligação regional (em rigor, não é uma verdadeira ligação internacional) só até Elvas.

Mais: quando em Setembro o Connecting Europe Express atravessou a fronteira de Vilar Formoso, um maquinista português teve de acompanhar o seu colega espanhol na locomotiva da Renfe que rebocou o comboio entre aquela estação e a de Fuentes de Oñoro. Em causa está um percurso de 1200 metros entre as duas estações fronteiriças. O trabalho do maquinista da CP foi coadjuvar a condução do colega durante o percurso português de... 267 metros!

O facto de os maquinistas terem de seguir uma longa formação em línguas nacionais individuais é “completamente insano”, diz Klaus-Peter Schölzke, Presidente da União Alemã de maquinistas de comboios. “A UE deve estabelecer a língua inglesa como padrão para o transporte europeu de mercadorias, ou seja, para maquinistas de locomotivas no transporte local, de longa distância e de mercadorias”, sugere.

Estas condições prevalecem também na administração dos caminhos-de-ferro. Nos últimos anos, a ERA tentou várias vezes acordar com os Estados-membros uma língua de referência, a fim de designar claramente os pormenores técnicos. Mas o Governo francês bloqueou cada avanço. “Resolver a questão linguística é muito difícil”, desespera o dirigente da ERA, Doppelbauer. Até à data, a sua agência teve de editar textos técnicos em 24 línguas.