Ferrovia regional – uma necessidade da Europa
29/05/2025 09:21 - Transportes & Negócios
A ferrovia regional faz muito mais do que apenas transportar do ponto A ao ponto B. Ela é vital para fomentar o conceito de coletividade, aproximar e conectar pessoas, lugares e experiências. The post Ferrovia regional – uma necessidade da Europa first appeared on Transportes & Negócios.

Do Plano de Ação já proposto pela Comissão surge, sem surpresa, a necessidade de melhorar ou manter serviços de transporte público cujo impacto é reconhecido e significativo no desenvolvimento futuro e na existência de boas ligações entre os territórios rurais e as zonas urbanas.
Tendo em conta que 137 milhões de europeus vivem em áreas rurais e que estas áreas correspondem a 83% do território da União Europeia, a importância de mais e melhor ferrovia, em particular de comboios regionais, é essencial quando se pretende que este meio de transporte seja também a principal referência da mobilidade local e rural.
De acordo com um estudo (2019) da Comissão da Política de Coesão Territorial e Orçamento da União Europeia (COTER), uma boa parte do transporte ferroviário a nível europeu acontece à escala local, com a ferrovia regional a representar 89% do número total de passageiros transportados por modo ferroviário e 50% do total de passageiros/quilómetro.
A aposta na ferroviária regional permite dar resposta, a curto prazo, a dois propósitos: i) dar escala às redes ferroviárias, através de ramais e troços a servirem territórios mais remotos, criando também oportunidades para tirar partido das potencialidades das regiões ao nível turístico e paisagístico, das economias locais e do setor produtivo local; ii) reforçar a intermodalidade e complementaridade, de modo a tornar o comboio uma verdadeira alternativa ao transporte individual.
Na Europa surgem vários exemplos onde este segmento, com a sua especificidade e diversidade, tem sido revitalizado e modernizado. Esta realidade é o resultado da sua integração não só nas principais medidas de sustentabilidade, descarbonização e promoção do transporte público de regiões e países, como também no processo de expansão e modernização de redes ferroviárias. Mas a revitalização da ferrovia regional está sempre dependente das políticas de desenvolvimento e de transportes, estratégias, visões, condicionantes e realidade de cada Estado-Membro e das suas regiões.
Se por um lado ainda há casos como o do operador público húngaro MÁV que, em 2023, suspendeu o serviço em 10 linhas regionais, substituindo-o por autocarros, por outro há realidades em que as dinâmicas institucionais, a vontade e o investimento conduziram à recuperação, reposição e modernização do serviço público ferroviário regional, contrariando ameaças de encerramentos e declínio, representando também novas oportunidades para a indústria ferroviária, operadores e regiões.
Na região italiana do Tirol do Sul reabriu, em 2005 e ao fim de 15 anos de interregno, a linha regional Merano-Malles, conhecida também como Treno Val Venosta, cuja gestão e exploração é de responsabilidade regional. Entre 2005 e 2021 foram investidos cerca de 205,5 milhões de euros, cofinanciados por fundos europeus, na reabertura, compra de comboios regionais novos e na eletrificação (atualmente a decorrer). Com um serviço ferroviário moderno, os benefícios fizeram-se sentir na mobilidade regional e na procura, com cerca de dois milhões de passageiros transportados anualmente. Este ano, e nas comemorações do 20.º aniversário da reabertura, a região autónoma apresentou a primeira unidade elétrica da nova frota de comboios regionais adquiridos, em 2022, com apoio do Plano de Recuperação e Resiliência italiano, que será também utilizada nas ligações transfronteiriças com a região austríaca do Tirol.
Ainda em Itália, na região de Piemonte, os comboios regionais regressaram, em janeiro deste ano, à linha Cuneo – Savigliano, ao fim de 13 anos de ausência e através do operador privado Arenaways a quem foi atribuído o contrato de serviço público. Esta empresa, que pretende contribuir para revitalizar a ferrovia regional italiana, a partir de 2028, e também através de contrato de serviço público, explorará o transporte de passageiros na linha Ceva – Ormea, que está sem comboios regionais desde 2012.
Em Espanha, o trabalho desenvolvido pela região da Catalunha e pelo seu operador público Ferrocarrils de la Generalitat de Catalunya (FGC), contribuiu para modernizar e consolidar o serviço nos 89 km da linha regional Lleida – La Pobla de Segur. Sob ameaça de encerramento desde meados da década de 80, o futuro foi assegurado, em 2005, quando a Catalunha assumiu o controlo da infraestrutura. Desde então foram realizadas várias intervenções e melhorias no serviço, e lançadas iniciativas ligadas ao turismo tais como a introdução, a partir de 2009, do comboio histórico Tren dels Llacs (Comboio dos Lagos). Em 2016 foi introduzido um novo modelo de exploração, passando a linha a ser explorada pela FGC, a frota foi renovada com três comboios a diesel novos e aumentou-se a frequência. Sem surpresa, a procura aumentou, de 121 583 passageiros, em 2004, para 446 037, em 2024.
No estado federal alemão da Baixa Saxónia comemorou-se, em 2024, o 5.º aniversário da reabertura de 28 dos 56 km da linha regional transfronteiriça Bad Bentheim – Neuenhaus – Coevorden, da empresa Bentheimer Eisenbahn AG. Reaberta ao fim de 45 anos de interregno e após um investimento de mais de 40 milhões de euros na modernização da infraestrutura e compra de comboios novos diesel, esta ligação é essencial no transporte local e atualmente trabalha-se para reabrir, em 2026, o troço internacional até à cidade neerlandesa de Coevorden. Os 34 milhões de euros de investimento devolver-lhe-ão a relação funcional perdida em 1980.
Ainda em solo germânico, aproveitando as dinâmicas de mercado e da liberalização do setor, em 2024 a ÖBB adquiriu o operador regional Go-Ahead Deutschland, entretanto renomeado de Arverio, como parte da estratégia de internacionalização da empresa ferroviária pública austríaca. Em 2021, também como parte da sua estratégia de internacionalização, a estatal espanhola Renfe adquiriu 50% do capital do operador Leo Express, assegurando assim a entrada no mercado ferroviário da Chéquia, Polónia e Eslováquia. Três anos depois, com a aquisição de 33% do capital da italiana Arenaways, a Renfe entrou no mercado italiano, através do segmento regional.
Na Alemanha, e tendo em conta os objetivos governamentais de investimento na rede ferroviária e a redução das emissões de gases de efeito estufa em 55% até 2030, a Aliança Pró Ferrovia e a Associação de Empresas de Transporte Alemãs propõem e trabalham junto da sociedade civil, dos estados federais e do governo federal para reabrir 325 linhas regionais e rurais, num total de 5 426 km. Esta medida tem impacto significativo na mobilidade dos territórios e das comunidades dado que permitirá servir diretamente 3,8 milhões de habitantes.
Os investimentos na ferrovia regional europeia são também oportunidades para a indústria ferroviária, que tem procurado dar resposta a este segmento extremamente diverso e competitivo para os vários fabricantes, através da produção de comboios de última geração e com as mais variadas configurações. Segundo um estudo (2021) da consultora SCI Verkehr, o mercado europeu registou um volume de negócios de 6,4 mil milhões de euros na compra de unidades múltiplas regionais, representando mais de metade do volume de mercado à escala global. A Europa tem também a maior frota existente, com uma quota de mercado superior a 50% em comparação com as frotas do resto do mundo.
De salientar ainda que a ferrovia regional faz muito mais do que apenas transportar do ponto A ao ponto B. Ela é vital para fomentar o conceito de coletividade, aproximar e conectar pessoas, lugares e experiências. E todo o processo e experiência de viagem de comboio começa numa estação.
As estações, independentemente da sua dimensão, classificação ou relevância, têm a capacidade de, além do seu papel essencial na operação ferroviária, servirem tanto o tecido empresarial local, como as comunidades locais através da implementação de serviços diversos, que contribuem para dar centralidade e dinâmicas próprias a estes espaços.
Uma das iniciativas mais recentes na Europa é a do Gruppo FS (Caminhos de Ferro Italianos) que, com o projeto “Estações do Território”, pretende tornar as estações em espaços multifuncionais e oferecer serviços aos cidadãos, com o objetivo de incentivar o renascimento de pequenas cidades e combater o despovoamento. O Gruppo FS tem 2 200 estações operacionais, das quais 1 200 servem municípios com menos de 15 000 habitantes. O projeto já se encontra em fase de implementação, tendo sido selecionado um conjunto de estações que vão receber novos serviços e funções, tais como clínicas, farmácias, espaços de trabalho, entre outros.
Tornar as estações regionais ou rurais em verdadeiros motores socioeconómicos das comunidades, contribui não só para melhorar a perceção do serviço de transporte público regional sobre carris, como também para serem vistas como elemento essencial da melhoria da qualidade de vida dos cidadãos.
A visão da Comissão Europeia para o território rural representa um momento importante para promover políticas de coesão, financiamento e de mobilidade regional convergentes, respeitando as diferentes realidades europeias, que fomentem a redução das várias disparidades existentes na área da ferrovia, em particular do segmento regional. Ao mesmo tempo deverá contribuir para aumentar progressivamente a quota de mercado do transporte ferroviário no segmento de passageiros que, atualmente e segundo a Agência Europeia do Ambiente, é de pouco mais de 7%.
Não há descarbonização do setor dos transportes nem se conseguem atingir os objetivos europeus de neutralidade carbónica sem uma boa rede de comboios regionais, capaz de assegurar frequência, fiabilidade e interligação com outras linhas e com outros meios de transporte. Só com uma oferta ferroviária capaz é que se vai conseguir retirar carros das estradas e promover o transporte coletivo sobre carris.
Em tempos de grandes incertezas e indefinições, uma visão abrangente e integrada, que inclua também as melhores práticas de mobilidade ferroviária regional e local, é o caminho presente e futuro para que o comboio seja um dos principais elementos de aproximação das regiões e de combate à descapitalização dos territórios.
ANDRÉ PIRES
Professor