CP abranda caminho para 100% de energia renovável com subida de 370% da factura
19/06/2022 06:58 - Público
Energia eléctrica para tracção provém em 70% de fontes renováveis, mas preços da electricidade estão a forçar a CP a abrandar o caminho para a meta de chegar a 2025 com 100% de energia verde e passar a contratar apenas em função do preço.
Entre Abril de 2021 e Abril de 2022, o aumento dos custos da energia eléctrica para tracção foi de 370%. Uma variação tão excessiva que a CP, que tinha como meta chegar a 2025 a consumir unicamente energia eléctrica proveniente de fontes renováveis, já admite abandonar, para já, esse critério como factor a ter em conta na escolha dos fornecedores, abrandando assim o caminho para esse objectivo.
“No contexto actual, no qual o custo da energia eléctrica se encontra muito inflacionado, a CP está a adjudicar em função do preço porque não existem condições para que a adjudicação tenha a ponderação quanto à origem de fontes renováveis”, disse ao PÚBLICO fonte oficial da empresa.
A CP gastou no ano passado 20 milhões de euros em energia eléctrica para tracção. Em 2019 esse valor foi de 23 milhões e em 2020, devido à pandemia, baixou para 18,6 milhões de euros. Mas este ano, em quatro meses, esgotou já o valor que tinha previsto para essa rubrica em todo o ano de 2022.
Ainda assim, é mais barato fazer circular comboios eléctricos do que a diesel e, sobretudo, mais amigo do ambiente. A percentagem de energia eléctrica produzida a partir de fontes de energia renováveis que é fornecida na rede ferroviária nacional é actualmente de 50%, seguindo-se o gás natural que vale 43%.
Mas a CP releva que “a utilização do comboio como meio de transporte já é por si um grande contributo para a redução dos gases com efeito de estufa, uma vez que é o modo de transporte que emite menos CO2 por passageiro, comparativamente aos modos de transporte alternativos”.
Os comboios eléctricos representam 84% da oferta diária da CP em função do número de quilómetros percorridos. Só 16% são a diesel.
Em Portugal é complexa a compra de “energia eléctrica para tracção”, expressão técnica que pode traduzir-se por “electricidade que faz andar os comboios eléctricos”. O fornecimento da rede ferroviária electrificada é feito através das subestações, que são edifícios instalados junto à linha que recebem a energia em alta tensão para abastecer determinados secções de via.
Quando foi criada a Refer, em 1997, havia 19 subestações em funcionamento e era a CP que negociava directamente a compra de energia para tracção. Essa prática mantém-se, 25 anos depois, sendo que, entretanto, a rede eléctrica foi-se expandindo e hoje há mais dez subestações para as quais é à IP que compete assegurar o fornecimento de energia eléctrica.
Parece confuso e é, tanto mais que é a IP, enquanto gestora da infra-estrutura, que tem a propriedade de todas as subestações, sendo também a responsável pela sua manutenção. Mais: nas 19 subestações que dependem da CP, esta fez um protocolo com a Medway para a compra conjunta de energia eléctrica para tracção. Depois as duas repartem entre si a factura em função do número de comboios de cada empresa que passam nos troços servidos por essas subestações. Já nas subestações em que é a IP que detém os contratos de energia eléctrica, estas terão de pagar os respectivos consumos à gestora de infra-estrutura.
Com a Fertagus também não é simples, pois os comboios deste operador privado são abastecidos por subestações cujo contrato de abastecimento foi negociado pela CP e outras que dependem do fornecedor da IP, havendo depois uma facturação de acordo com o número de comboios que circulam nos respectivos troços.
Já a Takargo, empresa do grupo Mota-Engil que foi recentemente comprada pela SNCF, está fora desta equação porque a sua frota só inclui locomotivas a diesel. Gerar energia
Em contrapartida, há outro aspecto que introduz mais complexidade, sobretudo na parte da tarifação. É que os comboios, durante as frenagens, também produzem energia eléctrica! Da mesma maneira que um automóvel eléctrico carrega baterias ao travar, um comboio eléctrico pode produzir quantidades significativas de energia eléctrica ao frenar, quer seja para parar nas estações ou durante as descidas. Essa energia pode ser devolvida à catenária e, por isso, passível de ser “comprada” pelo próprio fornecedor.
Segundo a CP, “a energia gerada pelas unidades motoras durante a frenagem que é injectada na catenária é repartida por consumo por outros comboios na vizinhança, devolução à rede eléctrica nacional através das subestações, ou perdida devido às perdas intrínsecas ao sistema de catenária”. A parte que é devolvida à rede eléctrica nacional representa, em média, cerca de 10,5% da energia total consumida. Um valor significativo que é abatido ao valor da factura da electricidade. Segundo a CP, “actualmente o valor pago pela energia ao fornecedor já é a diferença entre o consumido e o devolvido em cada subestação”.
A CP e a IP têm o mesmo fornecedor – a Endesa. No entanto, em 2021 era a Iberdrola que abastecia a CP. Presentemente, dada a instabilidade do mercado a CP está a fazer contratos de curta duração. Ambas se movem num mercado liberalizado que teve um momento marcante em 2010, quando a então Refer trocou a EDP pela Iberdrola e poupou 1,2 milhões de euros. A própria Refer tentou, em 2003, constituir-se enquanto empresa de distribuição de energia eléctrica com vista ao mercado liberalizado das empresas ferroviárias, mas o projecto não avançou. Aumento dos custos da energia favorece a rodovia face à ferrovia
A Associação Portuguesa de Empresas Ferroviárias (APEF) diz que, nas condições actuais de escalada dos preços dos combustíveis e electricidade, “há uma efectiva perda de competitividade da ferrovia face à rodovia, o que levará a uma transferência modal para a rodovia, contrária aos objectivos de sustentabilidade e descarbonização da economia portuguesa”.
Em comunicado, esta associação que, na prática, representa a Medway e a Takargo, diz que está em causa a sustentabilidade do transporte ferroviário de mercadorias porque o aumento dos custos, repercutido nos serviços de transporte, “põe em risco a competitividade das exportações portuguesas e da ferrovia como meio de transporte para as mercadorias”.
Segundo Miguel Rebelo de Sousa, director executivo da APEF, “verificamos um contraste quer com a rodovia - que dispõe de apoios financeiros - quer com a ferrovia noutros países europeus, que já dispõe de apoios financeiros para fazer face aos constrangimentos existentes”.
A APEF considera inexplicável a existência de um Fundo Ambiental, que tem como propósito apoiar e promover a transição energética, mas que não apoia nem promove o investimento na transferência modal para o modo de transporte mais sustentável: o comboio.
Hoje, a complexidade no fornecimento de energia para tracção e a sua facturação entre os players do sector mantém-se elevada. Por esse motivo, sob a égide da Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT), foi criado um grupo de trabalho para estudar o assunto, que envolve a IP, CP, Fertagus, Medway, Takargo, IMT, ERSE e DGEG. Segundo a IP, pretende-se “criar uma visão consensualizada sobre um novo modelo que permita primeiramente a redução dos custos de aquisição da energia e num próximo horizonte a liberdade de escolha do fornecedor por cada empresa de transporte ferroviário”.