Separados pela linha do comboio, moradores estão contra criação de “ghettos” na Granja e na Aguda
30/04/2022 06:18 - Público

Em causa está a construção de novas passagens pedonais elevadas e barreiras acústicas de 3,5 metros de altura nas duas localidades de Vila Nova de Gaia. Grupo de cidadãos, que prefere passagem inferior prevista em 2010, marcou protesto para este sábado. IP diz que a obra vai avançar.

Separados pela linha do comboio, moradores estão contra criação de “ghettos” na Granja e na Aguda

Num dia da semana de manhã, como é habitual quase diariamente, Janete Zenha e Clementina Zenha, mãe e filha, passam pela estação de comboios da Granja para chegarem à praia com o cão para um passeio. Vivem a 200 metros dali e estão a pouco mais de cinco minutos a pé do mar, até onde descem sempre que podem. Nesta e noutras vezes atravessam a linha de comboio pela única passagem que ali existe. Param, escutam, olham e seguem quando têm a certeza de que nenhum veículo se aproxima do sítio onde estão. Fazem-no desta forma como sempre fizeram: por cima de um estrado instalado ao nível do solo entre os carris.

Só que no futuro deixará de ser assim. Um estaleiro de obras montado mais à frente desvenda a empreitada que já está em curso – uma nova passagem pedonal vai substituir a que agora é usada, mas por uma via elevada. Para se perceber o que vai acontecer na Granja basta andar uns quilómetros para Norte até ao apeadeiro da Aguda, onde já existe uma estrutura montada muito perto de estar terminada. Nas duas localizações a passagem para o outro lado da linha passará a ser feita por uma via elevada, com recurso a escadas ou a um elevador.

Esta obra faz parte do projecto que a Infra-estruturas de Portugal (IP) tem vindo a implementar ao longo do troço ferroviário da Linha do Norte entre Espinho e Vila Nova de Gaia, que inclui a colocação de separações acústicas, reformulação de apeadeiros e construção de passagens pedonais superiores para substituir as actuais.

Mas esta nova solução não agrada a todos os moradores destas duas localidades de Vila Nova de Gaia - outro motivo de desagrado são as barreiras sonoras que estão a ser construídas para atenuar o ruído do tráfego ferroviário. Alguns cidadãos acreditam que as alterações que estão a ser levadas a cabo pela IP vão dividir a Granja e a Aguda ao meio, transformando a linha numa fronteira para quem ali vive, contribuindo para um resultado que consideram poder vir a ser penoso: o isolamento de parte da população que ali reside.

Por isso, ainda no ano passado, foi lançada uma petição online que conta com mais de 1600 subscritores para que a obra seja revertida. A proposta avançada defende a recuperação de um projecto de 2010, que previa uma passagem pedonal feita por túnel. Para reforçar esta intenção, neste sábado de manhã está marcado um protesto no apeadeiro da Aguda e na estação da Granja. Porém, a IP, para quem a autarquia remete qualquer informação, dá conta de que a obra em curso é para terminar. Entretanto, uma acção judicial foi movida por um grupo de cidadãos contra a empresa que tutela a obra.

Janete e Clementina ainda têm alguma dificuldade em imaginar como será feita a travessia depois da estrutura estar montada e a funcionar. Mas imaginam que será mais difícil convencer o cão a subir as escadas ou dividir o espaço do elevador com outras pessoas. Com mais certezas está Ivete Silva, residente na Aguda, que conversa com o PÚBLICO junto à actual travessia ao nível do solo instalada perto da nova estrutura já montada no apeadeiro da mesma localidade onde mora.

Diz perceber ser necessário actuar de forma a garantir a segurança de quem ali passa. Mas não apoia a solução encontrada. “A maior parte da população daqui é idosa. Basta o elevador avariar uma hora e alguém já não vai conseguir apanhar o comboio. Isto vai causar stress nas pessoas de idade.” Na prática, para quem utiliza o comboio, considera existirem alguns inconvenientes. Mas os que mais salienta são os que poderão vir a ter impacto directo na rotina diária de quem ali vive. “Quem aqui mora faz vida dos dois lados da linha. Deixará de haver comunicação entre vizinhos e famílias”, atira. “Há quem vá todos os dias ao café ou à lota do lado da praia. Essas pessoas poderão deixar de sair de casa”, sublinha. Outra questão que levanta tem a ver com a mobilidade. “As bicicletas vão caber no elevador?”, questiona.

Na Aguda a estrutura já está montada, mas ainda não está a funcionar. No apeadeiro ergue-se uma passagem elevada servida por escadas e elevadores dos dois lados. Não é o ideal para a moradora, mas também não apoia a solução prevista em 2010. “Não é a melhor solução para quem passa à noite”, assinala. Por isso, defende a manutenção da passagem que já existe ao nível do solo, mas com mais vigilância. “Havia aqui uma senhora que vigiava a passagem, mas já cá não está há uns anos. Podiam optar por colocar cancelas. Só seria necessário aumentar a vigilância”, considera.

Solução por túnel abandonada

A defender a passagem pedonal via túnel continua André Lima, membro do grupo de cidadãos que lançou a petição online, que estará presente no protesto deste sábado marcado para as 10h30. O morador da Granja diz não perceber o motivo por ter-se abandonado um “projecto de 2010” que previa uma passagem nos moldes que defende, que deu lugar em 2018 à solução actual.

“Estas passagens não se adequam à dinâmica local da Aguda e da Granja. A passagem pedonal inferior de 2010 permitia uma melhor acessibilidade para pessoas e bicicletas”, afirma, sublinhando não perceber o motivo para se ter optado por uma passagem superior nestes dois casos, quando em Espinho, Miramar, Valadares e Francelos se optou por vias inferiores. Sobre as barreiras acústicas, com cerca de 3,5 metros, considera serem desproporcionais e perigosas. “Deviam ser mais baixas e mais próximas da linha férrea. Existem problemas graves de insegurança. Se houver um acidente na linha não há possibilidade de fuga”, afirma.

As passagens superiores e as barreiras acústicas, afirma, contribuirão para a criação de uma espécie de “ghetto”. Por isso, não tem dúvidas, não há outra forma senão voltar atrás. Para não se desperdiçar o investimento total, acredita que as estruturas, “em estilo pré-fabricado” poderão ser reutilizadas noutro local.

Ao PÚBLICO, a IP afirma que a proposta de 2010 fazia parte de um “estudo prévio” que ficou para trás em fase de desenvolvimento do projecto de execução por uma questão de “salubridade”, “segurança” e por existirem “elevados níveis freáticos”. Por isso, não admite uma reversão da empreitada que garantirá as condições de transitabilidade “tanto quanto possível”. Pergunta-se qual o motivo para noutros casos, como Valadares, ter sido possível optar por uma passagem inferior. Mas a IP não respondeu.

Já a Câmara de Gaia, que no ano passado considerou as passagens superiores na Granja e na Aguda uma boa solução, prefere manter-se fora desta questão, por força do assunto ter-se deslocado para “o debate judicial”.