Turismo ferroviário dá os primeiros passos por terras beirãs
01/04/2022 07:00 - Público

O êxito de um passeio pela Beira Interior num comboio especial com quase 500 passageiros poderá encorajar autarcas e CP a programar uma oferta regular de turismo ferroviário na linha da Beira Baixa.

Turismo ferroviário dá os primeiros passos por terras beirãs

Sai-se do Entroncamento e o Tejo acompanha-nos sempre. Vila Nova da Barquinha e o castelo de Almourol logo a seguir. Tancos, Praia do Ribatejo, Constância, Abrantes. A longa ponte metálica sobre o rio que se atravessa para chegar a Alferrarede. E depois Mouriscas, Belver, Barca da Amieira. A paisagem é agora menos humanizada. O comboio circula mesmo à beirinha do Tejo, que é o centro das atenções de centenas de pessoas que o avistam e fotografam desde as janelas – abertas – das carruagens vermelhas que contrastam com o verde da paisagem.

Este é um comboio tão especial que até tem uma paragem de dez minutos em Fratel, não por motivos técnicos (não tinha nenhum cruzamento), mas sim para que os seus passageiros possam sair e fazer fotografias. Segue-se a subida até ao desfiladeiro das Portas de Ródão, onde a linha da Beira Baixa se despede do rio e rompe para norte rumo a Castelo Branco.

Que comboio é este, afinal, que no passado sábado, 26 de Março, surpreende toda a gente à sua passagem devido à sua composição e no qual viajam 470 pessoas com um ar deslumbrado e feliz? Trata-se de um passeio da APAC (Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos-de-Ferro) que fretou à CP uma composição composta por uma locomotiva 2600 e nove carruagens Schindlers para organizar um passeio pela Beira Baixa e Beira Alta. Um comboio que resulta inteiramente da recente recuperação de material circulante da CP pois ainda há três anos estes dez veículos estavam encostados e abandonados.

O evento superou as expectativas. Das três carruagens inicialmente previstas, acabaram por ter de se atrelar mais cinco. A APAC esperava 200 passageiros, mas em três dias esgotou as inscrições que chegaram aos 470.

“Ao todo, quase 500 pessoas participaram no nosso passeio, a que se somam mais de 100 pessoas que receberam os participantes na estação do Tortosendo e mais de 50 pessoas que fizeram a festa à passagem do comboio pela Benespera, uma demonstração inequívoca da vitalidade da associação e das forças vivas da região, sublinhando o enorme interesse em organizar viagens de cariz especial com alguma regularidade e com programas ferroviários diversos”, referiu a APAC num comunicado ao final do dia.

Mas há mais. “Pela primeira vez num passeio deste género o número de inscritos não sócios ultrapassa largamente o número de sócios da APAC”, diz José Pedro Leitão, dos Deolinda, que neste dia trocou o contrabaixo por um colete reflector da APAC e é um dos voluntários encarregues da organização da viagem. “Isto demonstra o interesse que o turismo ferroviário tem vindo a ganhar entre a população, inclusive entre as pessoas que não são propriamente entusiastas do caminho-de-ferro”.

O presidente da Câmara do Entroncamento, Jorge Faria, está atento a este fenómeno e diz que o seu município “pode ser a porta de saída para o turismo ferroviário da linha da Beira Baixa”. Por isso, em parceria com Vila Velha de Ródão, Castelo Branco e o Museu Nacional Ferroviário, vai organizar no dia 9 de Abril um passeio com estas carruagens Schindlers entre o Entroncamento e Castelo Branco.

“A CP também está a organizar passeios para o dia 10 de Abril e dois para o fim-de-semana seguinte”, anunciou o autarca, que pretende que estes comboios turísticos sejam regulares, realizando-se sempre aos fins-de-semana.

A ministra do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, é uma das passageiras deste comboio. Apesar de sublinhar que está aqui apenas como cidadã, não escapa à sua condição de governante e encontra-se permanentemente rodeada de gente que a quer cumprimentar.

“Estou aqui a fazer o mesmo que estas 470 pessoas que decidiram vir a bordo e que acreditam na capacidade do comboio para levar as pessoas a descobrir o território e a desenvolver o chamado interior”, diz, acrescentando que tem assumido a missão de colocar o distrito da Guarda nos centros de decisão e de valorizar o interior.

A ministra conta que faz muitas vezes a viagem de comboio entre Lisboa e a Guarda e que aproveita para trabalhar a bordo porque é uma boa maneira de aproveitar o tempo.

Além das várias paragens de dez minutos para fazer fotografias, o Comboio nº 13637 também teve uma paragem de uma hora na estação do Tortosendo (concelho da Covilhã), onde a freguesia local organizou um almoço para os viajantes. Esta autarquia de base tem, aliás, um projecto, designado “Quilómetro Zero” que coloca a estação ferroviária no centro de passeios turísticos pela região. O objectivo é incentivar o uso de meios de transporte não poluentes, como a bicicleta, mas também ser o ponto de partida para vários percursos pedonais.

A adesão das populações e autarquias da Beira Baixa ao comboio tem sido evidenciada desde que em Maio do ano passado reabriu o troço Covilhã – Guarda.

O caso da Benespera, que estava isolada e subitamente passou a ter ligações directas para a Beira Alta e para Lisboa, é um deles. O comboio da APAC foi recebido com o rebentamento de foguetes e morteiros e meia centena de voluntários improvisaram uma banca na estação onde ofereceram vinho do Porto e ginja aos passageiros.

Também sobre carris está a vereadora da Câmara da Guarda, Diana Monteiro, que acha que deveria haver uma data específica para viagens deste tipo. “Esta região tem vistas maravilhosas e eu vi que está toda a gente neste comboio encantada com a paisagem. Este comboio encheu em três dias, o que significa que há uma grande procura e muita gente com curiosidade em fazer esta viagem”.

É por isso que o município está a organizar rotas turísticas que incluem o turismo ferroviário, mas a vereadora não se compromete com datas nem pormenores: “Iremos ter na Beira Baixa e na Beira Alta novidades sobre isto, mas por enquanto ainda está no segredo dos deuses”.

A partir da Guarda inicia-se a descida da linha da Beira Alta. Dentro do comboio há poucas demonstrações de cansaço. Há até uma carruagem com música e gente a dançar. Ao cair da tarde, na serra, já faz frio e as janelas das carruagens vão-se fechando. Há, contudo, alguns irredutíveis que não desistem de filmar a marcha do comboio através das janelas abertas, sobretudo a partir de Santa Comba Dão, onde a via férrea irrompe trincheiras, túneis e pontes. O Tejo é uma recordação da manhã. Agora é o Mondego que nos faz companhia. Parecia um pequeno ribeiro lá em cima, mas espraia-se agora em grandes bacias provocadas pela barragem da Aguieira e que espantam quem ali passa pela primeira vez. Em breve passamos a ponte do Luso e depois a estação da Pampilhosa, onde parte dos passageiros apanha uma ligação para Lisboa porque as carruagens Schindlers vão para o Porto.

A APAC recorda que a CP vendeu “300 bilhetes para ligações Intercidades em correspondência com este comboio especial, o que se traduziu também num grande êxito comercial da CP, que com este programa da APAC atraiu para o Longo Curso um volume considerável de pessoas num dia que, tradicionalmente, não é de ponta de tráfego”.

Tendo em conta isto e as declarações dos autarcas, parece que o turismo ferroviário poderá mesmo vir a ter futuro.