A maquinista Raquel é a única mulher a conduzir comboios de mercadorias em Portugal
08/03/2022 07:00 - Público

No dia da Internacional da Mulher, o PÚBLICO conta a história de Raquel Beldroega que foi chamada para o curso de maquinistas aos 20 anos. Não estava a contar entrar neste que foi o último curso feito pela CP. Todos dias conduz comboios com centenas de contentores entre terminais de mercadorias e portos marítimos.

A maquinista Raquel é a única mulher a conduzir comboios de mercadorias em Portugal

São quase nove horas da manhã, o sol já está alto, mas continua a fazer um frio de rachar. Raquel Beldroega aconchega-se no blusão e atravessa o feixe de linhas de terminal de mercadorias do Poceirão, concelho de Palmela. O comboio que ela vai conduzir até Sines, vindo da Bobadela, concelho de Loures, é uma composição enorme, de 500 metros, com 23 vagões e 1290 toneladas de peso. À cabeça tem duas locomotivas acopladas, aquilo a que os ferroviários chamam “tracção dupla” pois uma só não chega para rebocar tantos contentores, sobretudo quando sobe a íngreme rampa de S. Bartolomeu da Serra.

Raquel recebe o serviço do colega que vai render e senta-se aos comandos da locomotiva eléctrica 4700, umas das mais potentes que circula na rede ferroviária portuguesa. Não há tempo a perder pois já vamos com 11 minutos de atraso. Um apito curto e a composição põe-se em movimento, sem esforço, deslizando sobre a linha. A partir de agora, e durante 142 quilómetros, a única mulher maquinista de mercadorias no país e que trabalha na empresa Medway, tem a responsabilidade de transportar até ao Terminal XXI, em Sines, estes 23 vagões com 45 contentores.

Transporta sobretudo concentrado de tomate, vinhos, azeites, pedra e produtos cerâmicos, naquilo que é uma boa amostra das exportações portuguesas. Para Raquel esta é uma viagem de rotina pois, diariamente, entram e saem do Porto de Sines 11 comboios de mercadorias em cada sentido.

A condução parece fácil. A maquinista tem a mão esquerda no manípulo da frenagem e a direita no manípulo da tracção. De forma simples, dir-se-á que trava com a mão esquerda e acelera com a direita. Os pés têm de ir forçosamente pousados num pedal chamado “homem morto”, um sistema de segurança que faz parar o comboio caso o maquinista deixe de dar sinal de vida. Segurança que é ainda reforçada pelo Convel (Controlo de Velocidade), o computador de bordo que lê e transmite a informação dos sinais ao longo da linha e que também faz parar o comboio se estes não forem respeitados. Mais: até há um “piloto automático” que permite que o comboio circule a uma velocidade pré-determinada.

Reflexos necessários para responder a emergências

O que não é fácil é ter a destreza para mexer nos dois manípulos quando é necessário vencer rampas, sobretudo se os carris estiverem húmidos, ou saber reparar avarias na locomotiva sabendo que cada minuto conta pois um comboio parado em plena via pode condicionar o tráfego ferroviário e prejudicar milhares de pessoas. Ou ainda ter a atenção e os reflexos necessários para responder a emergências e a situações súbitas de degradação da circulação.

Raquel Beldroega, de 38 anos, reconhece que faz parte de uma geração de maquinistas que beneficia muito da tecnologia, quer da que está instalada nas locomotivas, quer da que existe ao longo da linha e que monitoriza e dá segurança a todo o percurso. Mas tem ainda um cheirinho de outros tempos quando lhe calha conduzir locomotivas a diesel. “Confesso que não gosto. São barulhentas, passa-se calor no Verão e frio no Inverno, cheiram a gasóleo e têm um cabine muito apertada”, diz.

Felizmente já são poucos os serviços com esse material, que se limitam aos comboios das minas de Neves Corvo.

“Entrei para a CP em 2008. Nunca tinha pensado ser maquinista. Trabalhei para os CTT através de uma empresa de trabalho temporário. Na central de Cabo Ruivo, nos correios de Vila Franca de Xira, mas também trabalhava num call center. Quase não dormia. E de repente fiquei desempregada. Como tinha de fazer procura activa de emprego, em vez de andar a oferecer-me nas lojas, mandei currículos para grandes empresas e num belo dia telefonam-me da CP para ir fazer testes para maquinista. Fiquei sem jeito. Nunca foi uma coisa que eu ambicionasse”.

A velocidade máxima destes comboios é de 100 km/h e tem sido quase sempre a este ritmo que temos vindo, mas agora que passámos Alcácer do Sal o comboio nº 51383 tem de parar para ser ultrapassado por um Alfa Pendular. Não esperamos muito. E mal o avistamos ao longe, pelo espelho retrovisor, já ele está ao nosso lado, correndo veloz, a 200 km/h, a caminho do Algarve. Durou apenas uns segundos. Em breve o sinal vermelho dá lugar ao verde e Raquel acciona o manípulo da tracção, pondo novamente em movimento 1290 toneladas de ferro e aço com a respectiva carga contentorizada.

“Passei nos testes e fui fazer o curso ao Entroncamento. Era eu e 27 meninos distribuídos por duas turmas. Fiquei envergonhada quando soube que era a única mulher, não só no curso como no terreno. Mas foi tranquilo. Estávamos todos na casa dos 20 anos e havia uma grande camaradagem”.

Foi o último curso de maquinistas organizado pela CP. Hoje, quem quiser ingressar na profissão tem de despender 19 mil euros para fazer o curso e sem quaisquer garantias de emprego.

A primeira viagem

Aos nove meses de formação seguiu-se um interregno de uns meses, durante os quais Raquel voltou para um call center, até ser chamada para ingressar na CP. A primeira vez que pegara nos comandos de uma locomotiva fora numa marcha de formação, entre o Entroncamento e Torre das Vargens (Ponte de Sor). Seguiram-se várias viagens, sempre acompanhada, para se habituar aos diversos tipos de máquinas e para “aprender caminho”, isto é, conhecer as vias férreas onde iria operar. Mas a primeira viagem que fez sozinha ficou-lhe na memória.

“Foi de Praias Sado para as minas de Neves Corvo, ainda por cima numa 1900 [locomotiva a diesel]. Estava um bocadinho nervosa. Se alguma coisa falhasse não tinha ninguém para me ajudar. Mas correu bem.”

Na verdade, os maquinistas da Medway não viajam sozinhos. Conta com o apoio de um “agente de acompanhamento”, neste caso Ricardo Quinas, que tem um papel importante na formação do comboio, verificando se a composição cumpre as condições regulamentares, toma conta da documentação, comunica por telefone com o CCO (Centro de Comando Operacional) e auxilia o maquinista dizendo em voz alta o estado da sinalização como medida de redundância. Tem também à sua frente uma válvula de emergência para fazer parar a composição no que é mais uma redundância para a segurança ferroviária.

Raquel nunca está sozinha na locomotiva, excepto quando é escalada para o serviço de manobras, um turno sedentário que consiste em ficar no terminal de mercadorias a “passar a ferro” (andar com a máquina para trás e para a frente a rebocar e empurrar vagões para formar as composições).

“Nos primeiros anos fiz muitas noites, dormia várias vezes por semana fora de casa e trabalhava aos fins-de-semana. Quando acabamos o serviço em Sines, em Setúbal, ou no Entroncamento, ficamos num hotel pago pela empresa. Eu já sabia para onde vinha e não me queixo. Na altura eu era solteira e até dizia que nem queria ter filhos. Mas agora, como tenho duas crianças, os serviços que me atribuem são sempre de dia e durmo sempre em casa. Normalmente faço Poceirão – Praias Sado, Poceirão – Monte das Flores [Évora], Praias Sado – Entroncamento ou viagens curtas de Setúbal à siderurgia do Seixal”.

O facto de o marido ser colega de profissão também ajuda. As escalas são feitas de forma a que um dos dois esteja sempre disponível para ir levar ou trazer os filhos à escola. A mulher que está aos comandos desta comboio de 500 metros tem preocupações bem femininas: “tenho de estar às três da tarde no Barreiro para ir ao cabeleireiro, que já não vou há que tempos, e depois ir buscar a minha filha à escola e levá-la também ao cabeleireiro”. E diz que em casa só se fala de trabalho o “estritamente necessário”.

Passamos Grândola, Canal Caveira, Lousal. A paisagem é monótona. Por momentos temos a companhia da A2 ao lado da linha, mas no resto são quase sempre pinheiros. Aproximamo-nos de Ermidas-Sado e Raquel reduz a velocidade para 45 km/h. Vamos deixar a linha do Sul e desviarmo-nos para a linha de Sines, onde só circulam comboios de mercadorias. Em breve estamos na maior recta da rede ferroviária portuguesa, de sete quilómetros, algures entre Ermidas e São Bartolomeu da Serra. A paisagem é igualmente monótona, mas agora feita de montado. Há sobreiros cujas ramagens roçam o espelho retrovisor da locomotiva.

Sete anos depois de entrar na CP, a empresa dedicada às mercadorias (CP Carga) foi vendida à MSC. A privatização trouxe os maiores receios aos trabalhadores e Raquel não esconde que também ficou apreensiva. Mas os sindicatos negociaram a manutenção das condições laborais que já existiam na CP e o novo patrão, que mudou o nome para Medway, teve o cuidado de implementar as mudanças de gestão de forma gradual e respeitando a cultura da empresa. Raquel não perdeu direito ao passe para circular gratuitamente nos comboios da CP e até ganhou descontos para fazer cruzeiros da MSC, coisa que ainda não aproveitou.

“O pior desta profissão é a hora de saída incerta, sobretudo a partir do momento em que tenho filhos. Pode sempre haver atrasos, problemas da sinalização, queda de catenária, avaria do material motor, atrasos nas cargas e descargas, interrupções de via para obras... Uma vez fiquei toda a noite em Grândola numa 1900 por causa de uma interdição de via. Era para ter acabado o serviço às dez da noite e só cheguei às seis da manhã...”.

E o melhor desta profissão? “É que não há dois dias iguais. É verdade que fazemos sempre o mesmo, que é conduzir comboios, mas os percursos são diferentes, as paragens são diferentes, os colegas são diferentes. E tem outra coisa boa – é uma profissão em que não levamos trabalho para casa... Olhe, chegamos ao Arco do Triunfo!”

Passamos debaixo de uma ponte de pedra que fica no momento exacto em que acabamos de vencer a difícil subida de S. Bartolomeu da Serra e iniciamos a descida para o mar (avista-se o castelo de Santiago do Cacém e as indústrias de Sines lá ao fundo). Com determinados comboios e com condições atmosféricas que deixam os carris húmidos, a locomotiva pode patinhar. É preciso experiência, engenho e arte para não deixar o comboio parar a meio da rampa.

Raquel diz que já aqui andou a “contar travessas”. Significa que vai a 3 ou 4 km/h, tão devagar que dá para ir contando as travessas que suportam os carris. Quando se chega a ponto mais alto desta subida, é um autêntico triunfo.

Mas na descida para Sines espreitam outros perigos. O comboio ganha velocidade e a maquinista apita insistentemente. “Tenho um medo que me pelo destas passagens de níveis. Há pessoas que não têm cuidado... São os carros, os tractores... Às vezes param, vêem o comboio e mesmo assim atravessam. Já apanhei grandes sustos.”

Em caso de frenagem de emergência, um comboio deste tipo precisa de 800 metros para se imobilizar.

“E não é só as passagens de nível. Às vezes há vacas, ovelhas e até cavalos que saltam a vedação e entram na linha. Um susto.... Felizmente, até hoje, o pior que me aconteceu foi colher um javali. Mas a maior parte dos meus colegas já teve colhidas de pessoas. Sei que pode acontecer-me um dia. Não sei se estou preparada para isso...”.

Em Sines avista-se ao fundo uma montanha de contentores. “Aquilo ali é um navio. É cada um!...”, comenta o colega Ricardo Quinas. Passamos a Central Termoeléctrica de Sines e circulamos ao lado da praia de S. Torpes. Os dois ferroviários riem-se e dizem que é “Saint Tropez”.

São 10h52. Aproximamo-nos do Terminal XXI e avistamos um par de locomotivas que nos aguarda numa linha desviada. Mal paramos (dando por finda a marcha que chegou com 25 minutos de atraso), as nossas máquinas são desengatadas e vamos para uma linha desviada. A outra dupla, composta pela Bárbara e a Liliana, empurra os 23 vagões para o terminal marítimo onde se inicia imediatamente a descarga dos contentores.

Agora a “Sofia” e a “Earine” estão isoladas. Raquel permanece na cabine e fala pelo sistema acústico da locomotiva com os operadores de manobra. Em breve as três irão manobrar para rebocarem uma composição que está na linha ao lado e iniciarem a viagem de regresso ao Poceirão e Bobadela.

Mas quem são, afinal, estes nomes que de repente entraram no texto?

“As locomotivas da Medway têm nomes femininos porque a administração decidiu que seriam todas baptizadas com os nomes de filhas (e no caso de não haver filhas, seriam de netas) de colaboradores da empresa. Os baptismos começaram a ser feitos a partir dos colaboradores mais antigos e por enquanto ainda não chegou à minha vez, que tenho uma Andreia... Hoje vamos circular na Sofia, a 4723, que vai em dupla com a Earine, que é a 4719”.