Governo “congela” privatização de parte da CP Carga
05/12/2021 06:58 - Público

A privatização da CP Carga foi decidida em 2015 pelo Governo PSD/CDS, mas acabou por ser fechada pelo executivo socialista em 2016, que não reverteu a decisão. A MSC ficou então com 95% do capital, e 5% deviam ter sido vendidos aos trabalhadores, o que não aconteceu até hoje. Governo remete-se ao silêncio, com o accionista privado e trabalhadores à espera da conclusão do processo. Pelo meio, há um relatório por divulgar.

Governo “congela” privatização de parte da CP Carga

A 20 de Janeiro de 2016, numa cerimónia à porta fechada na sede da CP, no centro de Lisboa, e já com o Governo socialista liderado por António Costa no poder, foi concretizada a venda de 95% do capital da CP Carga ao vencedor da privatização, a Mediterranean Shipping Company (MSC). Os outros 5% do capital estavam reservados para os trabalhadores, tal como está definido na lei-quadro das privatizações, que diz que os funcionários das empresas em causa “têm direito, independentemente da forma escolhida para a reprivatização, à aquisição ou subscrição preferencial de acções”.

Por regra, tal como aconteceu no caso da TAP (o mais recente de todos), a alienação aos trabalhadores faz-se através de uma Oferta Pública de Venda (OPV), disponibilizando uma fatia de 5% do capital com um desconto de 5%, por acção, face ao preço pago pelo vencedor da privatização.

Só que, quase seis anos depois, a venda aos trabalhadores de fatia de 5% da antiga CP Carga, hoje Medway, ainda não aconteceu, e o processo de venda da empresa pública permanece incompleto, sem que seja dada qualquer explicação para o não cumprimento da lei, num processo opaco. O PÚBLICO enviou diversas perguntas ao Governo, através do Ministério das Infra-estruturas tutelado por Pedro Nuno Santos e do Ministério das Finanças tutelado por João Leão, mas deparou-se com um muro de silêncio.

A venda da empresa pública tinha sido uma opção do anterior executivo PSD/CDS, liderado por Pedro Passos Coelho, que conduziu diversas privatizações no âmbito do memorando de entendimento assinado com a troika de credores, mas, ao contrário de várias outras na área dos transportes, esta não foi revertida pelos socialistas.

Em Janeiro de 2016, o então ministro das Infra-estruturas do Governo PS, Pedro Marques, afirmou aos jornalistas que a CP Carga “não estava entre as que era prevista a reversão [da privatização]”.

Dois anos depois, no início de 2018, questionado pelo PÚBLICO sobre o facto de a venda aos trabalhadores não se ter realizado, Pedro Marques afirmou que ainda não tinha havido “condições de consensualização” para que a OPV avançasse. Sem mais pormenores, disse apenas que a OPV avançaria “nos termos adequados” e “quando tiver de ser”. Inquirido sobre se o problema estava relacionado com o preço da operação e o valor das acções, o então ministro voltou a remeter para o que apelidou de “condições de consensualização”. Vencedor da privatização fala em situação “desconcertante”

“É uma boa pergunta!”, diz Carlos Vasconcelos, presidente da Medway, quando questionado agora pelo PÚBLICO sobre as razões pelas quais a privatização não se concluiu. “Acho que basicamente é por burocracia, por inércia. Não vejo nenhuma razão em especial. Acredito que inicialmente tivesse havido alguma indecisão do Governo em concretizar a privatização, mas, neste momento, o que me dizem é que está tudo nas Finanças e que as Finanças é que têm travado a decisão”, acrescenta.

De acordo com as regras, o vencedor da privatização fica com as acções que não forem subscritas pelos trabalhadores (além de poder comprar, posteriormente, as que forem subscritas, tal como aconteceu no caso do BPN/Eurobic), podendo assim vir a assegurar 100% do capital. Foto Carlos Vasconcelos, presidente da Medway, já escreveu uma carta ao ministro Pedro Nuno Santos a perguntar sobre a venda dos 5% Rui Gaudêncio

O presidente da Medway escreveu inclusive uma carta ao ministro das Infra-estruturas, em Outubro do ano passado, na qual recordou Pedro Nuno Santos do facto de o processo estar parado, sublinhando a “desconcertante falta de concretização das acções em falta”, e que, com o não avanço da OPV, a empresa estava “impedida de concluir a aquisição definitiva de acções” não subscritas pelos trabalhadores.

“Sabemos”, informou o gestor, “que, em meados do ano anterior, a CP já tinha elaboradas as minutas referentes ao texto para a Resolução do Conselho de Ministros a publicar e o correspondente documento informativo sobre a operação de Oferta Pública aos trabalhadores”.

Por isso, frisou Carlos Vasconcelos na carta, “tendo presente o atraso de cinco anos verificado e as consequentes implicações, solicitamos os bons ofícios de V. Exa. na promoção, com a maior brevidade possível, da concretização de oferta de venda de acções destinadas aos colaboradores da Medway, nos termos legalmente previstos, bem como os esclarecimentos quanto ao estado actual do processo e perspectivas de resolução do mesmo”.

De acordo com as contas da MSC, o valor dos 5% está relacionado com o preço de compra da ex-CP Carga, o que equivale a 85.979,14 euros.

Trabalhadores querem exercer direitos de compra

Neste momento, os 5% em causa ainda estão nas mãos da CP. Se, no relatório e contas de 2016, a empresa pública dizia que em Janeiro desse ano, “cumpridas as condições por parte do comprador e da aprovação governamental concluiu-se o processo de privatização da CP Carga”, no documento referente a 2020 refere-se que a CP “ainda detém uma participação de 5%, que é temporária, e aguarda a conclusão de alguns procedimentos previstos no acordo de venda de referência”. A mesma frase encontra-se, tal e qual, no relatório e contas de 2017.

Na altura que decorria a venda da CP Carga (com a qual o então presidente da CP, Manuel Queiró, até nem concordava), Raul Vasques, da Comissão de Trabalhadores da empresa, afirmou ao PÚBLICO que “nenhum trabalhador” estava interessado nos 5%, porque estes queriam é que fosse “100% do Estado”. Ao todo, a companhia de transporte de mercadorias tinha mais de 500 trabalhadores.

Neste caso, estamos perante um processo ainda não concluído, pelo que a realização de qualquer acção de controlo será ponderada oportunamente, de forma a que o Tribunal possa ter todos os dados relativos à sua concretização Fonte oficial do Tribunal de Contas

Hoje, a posição mudou. O actual presidente da Comissão de Trabalhadores, Pedro Ferreirim, diz que à época tinham medo de perder alguns direitos que usufruíam na CP, mas que essa questão foi ultrapassada e admite que há colegas que possam estar interessados em participar no capital da empresa em que trabalham.

Este responsável desconhece, também, as razões do atraso. “Em 2018, fizemos um documento para a administração da CP para saber o que era feito dos 5%, porque houve alguns trabalhadores que manifestaram interesse nas acções, mas nunca obtivemos resposta da empresa. Eu até julgava que os 5% já não estivessem na CP, mas sim no Tesouro. O assunto nunca mais foi falado”, disse ao PÚBLICO. Para já, os trabalhadores continuam sem poder exercer os seus direitos de opção.

No caso da privatização da EGF, empresa de tratamento de resíduos, o processo foi ganho pela Suma, da Mota-Engil, que fechou o negócio de compra de 95% em Julho de 2015. A OPV demorou bastante tempo, mas acabou por realizar-se dois anos depois, em Agosto de 2017, já com o Governo PS.

O interesse foi residual, com os trabalhadores a subscreverem apenas 1300 acções das 560.000 disponíveis, ao preço de 14,6 euros cada uma (valor que inclui um desconto de 5%). Neste caso, a lei cumpriu-se, e a Mota-Engil adquiriu o capital que ficou disponível, subindo a sua posição para 99,99%.

O papel do Tribunal de Contas

Quando foi anunciado o vencedor da venda da CP Carga, em Agosto de 2015, a MSC deixou para trás a Atena Equity Partner e a Cofihold, com uma proposta de 53 milhões de euros, dos quais dois milhões para a aquisição das acções e outros 51 milhões para “a aquisição de créditos da CP Carga e compromissos de capitalização da empresa”.

Em Setembro daquele ano, a escolha do vencedor foi oficializada pelo executivo PSD/CDS numa cerimónia que também decorreu à porta fechada. Por parte dos trabalhadores, estes apresentaram um documento, logo nesse mês, ao Tribunal de Contas e à ProcuradoriaGeral da República no qual contestavam o negócio. Para os trabalhadores, a empresa estava a ser “doada” e não vendida, e que a empresa privatizada ficava isenta de pagar rendas e ganha os activos, enquanto a CP perdia as rendas e as locomotivas. Desconhecem-se desenvolvimentos desta queixa.

No seu parecer sobre a conta geral do Estado de 2016, o Tribunal de Contas dá nota que, logo em Setembro de 2015, a MSC entregou “um adiantamento” após ter ganho a privatização. “Em Janeiro de 2016, cumpridas as condições por parte do comprador e obtida a aprovação governamental, foi concluído o processo de privatização da empresa, com a assinatura do respectivo contrato de venda, embora o valor final de venda, designadamente, o diferencial do ajustamento não estivesse ainda apurado”, acrescenta o Tribunal de Contas.

Numa nota de rodapé, o Tribunal de Contas esclarece que o processo “envolve a alienação de acções representativas de 100% do capital social através de uma venda directa e uma oferta pública de venda dirigida aos trabalhadores”. Nada surge referido sobre o negócio, e a não concretização da OPV, nos relatórios dos anos seguintes.

O PÚBLICO questionou o Tribunal de Contas sobre o facto de a venda destinada aos trabalhadores ainda não ter ocorrido, se tinha tomado alguma acção e como via esta situação, tendo fonte oficial respondido que sobre esta operação “não deu entrada no tribunal qualquer processo para fiscalização prévia”.

“Está em curso a execução do programa de fiscalização para 2021, no âmbito do programa trienal de 2020 a 2022. A selecção das acções de controlo resulta de priorização baseada numa metodologia de análise de risco, revista sempre que for necessário (como já sucedeu devido à pandemia), bem como de pedidos da Assembleia da República”, referiu a mesma fonte. Foto Ministério das Finanças não diz onde está disponível o relatório final da comissão de acompanhamento da privatização Nuno Ferreira Santos

“Neste caso, estamos perante um processo ainda não concluído, pelo que a realização de qualquer acção de controlo será ponderada oportunamente, de forma a que o tribunal possa ter todos os dados relativos à sua concretização”, acrescentou. Relatório com falta de dados e por conhecer

Eduardo Cardadeiro, que foi nomeado presidente da comissão de especial de acompanhamento da privatização – uma figura prevista na lei e cujo papel é o de assegurar a transparência, rigor, e a melhor defesa do interesse público no processo de venda – diz ao PÚBLICO que foram elaborados os relatórios preliminares conforme previsto enquanto decorria o processo.

Após a escolha do vencedor, foi ainda foi necessário notificar a Autoridade da Concorrência (Adc), que deu a necessária “luz verde” para oficializar o negócio a 4 de Dezembro, levando depois a conclusão do negócio já para o executivo socialista, em Janeiro.

Eduardo Cardadeiro recorda que teve por essa altura uma reunião no Ministério das Infra-estruturas para se fazer um ponto de situação do processo. A comissão a que presidiu solicitou vários documentos para elaborar o relatório final, como o acordo de venda directa e o parecer não confidencial da AdC. No entanto, a documentação, como o acordo de venda directa, nunca lhes foi entregue, assegura, não tendo sido dada qualquer justificação para tal.

A comissão, formada por mais dois responsáveis, acabou por entregar o relatório, mesmo sem a operação estar concluída, no final de 2016, tendo então dado por concluído o seu mandato. “Decidimos enviar o relatório após esperar por informação básica do processo”, recorda. “Não íamos ficar num limbo”, diz este professor e ex-administrador da Anacom, mas “não nos pronunciámos sobre uma série de questões”.

De acordo com a lei em vigor, o relatório, depois de entregue, tem de ser publicado no site do Ministério das Finanças, algo que não parece ter acontecido. O PÚBLICO não encontrou qualquer referência a este relatório de garante de transparência do processo, e o Ministério das Finanças não respondeu sequer se tinha ou não sido publicado (em caso negativo, porquê; e, em caso positivo, onde estava disponível).

PS esteve contra a privatização da CP Carga em 2015

Em Março de 2015, os socialistas, através do deputado João Paulo Correia, chegaram a defender que o Governo PSD/CDS devia suspender “as privatizações da CP Carga e da EMEF” (a da EMEF acabou por não se concretizar).

Em declarações à Lusa por ocasião do Conselho de Ministros em que foi tomada a decisão de vender as empresas, o deputado do PS afirmou que o executivo liderado por Pedro Passos Coelho estava “em fim de mandato” e questionou “a legitimidade política para avançar com processos desta importância, processos que merecem sempre algum tempo de preparação e de maturação”.

No entanto, em Janeiro de 2016, já com o Governo socialista liderado por António Costa no poder, apoiado pelos partidos à sua esquerda, o ministro do Planeamento e das Infra-estruturas, Pedro Marques, afirmou aos jornalistas que a reversão da venda CP Carga não estava “nem no programa de Governo nem nos acordos políticos” assinados com o BE e com o PCP. “Essa empresa não estava entre as que era prevista a reversão [da privatização]", sublinhou o ministro socialista, Pedro Marques.

Por parte do PCP, este partido apresentou no Parlamento, em Novembro de 2015, um projecto de lei cujo objectivo era o de determinar “o cancelamento e a reversão do processo de privatização da CP Carga”.

Assinado por 13 deputados do PCP, o projecto defendia que a dívida da empresa – um dos temas ligado à privatização – no valor 120 milhões de euros, tinha um “dado digno de nota”. Deste valor, dizia o PCP, 30 milhões “correspondem a leasings de vagões transferidos em 2009 da CP para a CP Carga; e o restante foi criado pela opção, tomada em 2009, de manter na CP as locomotivas, colocando a CP Carga a pagar uma renda anual, cujos valores foram em 2014 de 18,8 milhões de euros de renda mais sete milhões de euros dos juros já devidos pela dívida contraída para pagar essas rendas”.

“A forma opaca como o Governo PSD/CDS avançou com o processo de privatização da CP Carga trouxe apenas razões acrescidas às que já de si impunham um intenso combate a esta privatização”, defenderam então os deputados comunistas, segundo os quais o executivo liderado por Passos Coelho “nunca informou a Assembleia da República dos verdadeiros contornos do negócio, nem permitiu que as administrações da CP e da CP Carga informassem as respectivas comissões de trabalhadores como manda a Lei e a Constituição”.

Depois de passar para a comissão de economia, inovação e obras públicas, foi elaborado um parecer, da autoria do deputado socialista Pedro Coimbra, no qual se referiu que não era possível “quantificar eventuais encargos resultantes da aprovação da presente iniciativa”. “Todavia”, acrescentou-se, “em caso de aprovação e face à eventualidade dos mesmos poderem ocorrer, sugere-se que o início da sua vigência se efectue com a entrada em vigor do Orçamento do Estado posterior à sua aprovação”. Nada acabou por acontecer, e a iniciativa do PCP caducou em Outubro de 2019.