Comboios: onde estão os direitos dos passageiros?
28/11/2021 06:30 - Público

Por que razão não existe um site com os preços para comboios internacionais na Europa e é quase impossível comprar um bilhete único para uma viagem de comboio entre dois países, quando se pode fazê-lo para um bilhete de avião de companhias diferentes? Os maiores países europeus estão a esforçar-se para que tudo se mantenha igual.

Comboios: onde estão os direitos dos passageiros?

A compra de uma viagem de comboio transfronteiriça pode ser um pesadelo. Começa por exigir a compra de bilhetes diferentes, de várias operadoras ferroviárias, em diversos sites e em várias línguas.

O negócio dos aviões — de natureza internacional — tem, ao longo do tempo e sem regulamentação da UE, aberto os dados dos bilhetes e das rotas, permitindo a empresas terceiras, como a E-Dreams, a Skyscanner ou a Momondo, comparar tarifas e vender bilhetes. Mas isso não existe para os comboios. Há 30 anos um emigrante podia comprar facilmente um bilhete de comboio de Mangualde para Bruxelas ou de Barcelos para Bordéus. Era um tempo em que havia uma integração e cooperação entre as empresas ferroviárias nacionais como não há hoje.

A excepção ainda continua a ser o Inter-rail, que permite viajar de comboio por vários países europeus, sendo a receita distribuída pelos vários operadores de acordo com os percursos utilizados pelos passageiros. Mas é mais fácil comprar um Inter-rail do que um bilhete internacional que atravesse vários países.

“Nós estamos impacientes”, confessa Kristian Schmidt, o director de transportes terrestres da Comissão Europeia. Por isso, este responsável dinamarquês garante-nos que, no próximo ano, a Comissão vai propor uma nova legislação sobre bilhetes de comboio. Será a segunda vez. A primeira não passou no indispensável voto do Conselho.

No ano passado, uma lei da UE, proposta pela Comissão e aprovada pelo Parlamento Europeu, actualizava as normas mínimas comuns para os direitos dos passageiros ferroviários. O Parlamento Europeu adoptou uma alteração ao regulamento sobre os direitos dos passageiros dos comboios, exigindo que as companhias ferroviárias “forneçam acesso não discriminatório a todas as informações sobre viagens, incluindo informações operacionais em tempo real sobre horários e dados tarifários.”

O eurodeputado verde sueco Jakop Dalunde, o principal proponente desta reforma, disse à Investigate Europe que se sentiu sozinho ao acreditar que os dados sobre bilhetes eram cruciais para aumentar as viagens de comboio transfronteiriças europeias.

“Falei com diferentes eurodeputados e expliquei-lhes o que estava em causa — quase todos eles acharam que era uma boa ideia”, disse Dalunde. “Os políticos à esquerda [concordaram] porque facilitaria às pessoas a escolha do comboio; as pessoas à direita, porque significava mais concorrência.”

Resistência do Conselho

Mas no Conselho de Ministros dos Transportes da UE, a proposta do Parlamento não passou. A Suécia levantou o assunto, mas não recebeu apoio dos outros Estados-membros, segundo um relatório do perito jurídico governamental Alexander Nilsson. “No grupo de trabalho do Conselho, prosseguimos com essa proposta, inspirados pelas propostas do Parlamento, e [fomos] os únicos a fazê-lo”, disse Nilsson à Comissão de Assuntos Europeus do Parlamento sueco.

A lei final da UE — modificada em negociações tripartidas, os trílogos, entre o Parlamento, o Conselho e a Comissão Europeia — inclui a obrigação de os operadores ferroviários partilharem os seus dados. Mas não de uma forma não discriminatória, livre para qualquer pessoa utilizar, mas sim através de contratos. Além disso, este requisito não tem de ser aplicado até 2030, se for “tecnicamente inviável”.

Cada país tem, hoje, os seus próprios sistemas ferroviários e de bilhetes e tarifas nacionais, com os seus sistemas de bilhetes autónomos.

Algumas empresas tentaram colmatar esta lacuna no mercado, incluindo a Raileurope e a Trainline. Mas são desconhecidas dos consumidores na maioria dos países e só se ligam a operadores de comboios em alguns países da Europa ocidental, explica Mark Smith, conhecido como o “Homem do Lugar 61”, que é também o nome de um site especializado em viagens ferroviárias.

“Por isso, o único site onde poderá comprar um bilhete de Budapeste para Zagreb por 19 euros é o site húngaro mavCSOport.hu”, explica. “É claro que só o nome se enrola na língua de quase todos. É um site familiar? Não...”

Os consumidores têm assim de recorrer a agências de viagens de nicho ou a pessoas como Mark Smith, que partilha gratuitamente as melhores rotas no seu site de viagens.

Se as companhias ferroviárias nacionais não querem abrir os seus dados para que outros possam comparar e vender os seus bilhetes, não deveriam elas próprias prestar este serviço? Isto também foi discutido — e recusado.

No regulamento revisto sobre os direitos dos passageiros ferroviários, a Comissão Europeia propôs a exigência de “fazer todos os esforços possíveis para oferecer bilhetes únicos, inclusive para viagens através das fronteiras e com mais de uma empresa ferroviária”.

“Bilhetes únicos” significa que na viagem de Lisboa para Madrid, embora existam companhias portuguesas e espanholas que operam partes diferentes do percurso, bastaria comprar um único título de transporte.

Sem bilhetes únicos, as viagens de comboio de longa distância na Europa significam frequentemente um risco económico considerável para os passageiros.

Se uma viagem de comboio tiver um atraso de uma hora, o passageiro tem o direito de receber de volta 25% do preço do bilhete, de acordo com as regras da UE. Mas se o atraso for inferior a uma hora, mas significar à mesma que se perca o comboio de ligação de outro operador, o passageiro não recebe qualquer indemnização.

Vários operadores na Europa ocidental aplicam o princípio de que os passageiros podem apanhar o próximo comboio disponível. Mas este não é um direito generalizado.

Enquanto o Parlamento Europeu reforçou a obrigação de fornecer bilhetes de passagem, o Conselho, por sua vez, diluiu-o. O acordo final ditou que as companhias ferroviárias só tinham de fornecer bilhetes únicos para as suas filiais.

Um dos diplomatas na reunião do Conselho onde este artigo foi discutido registou que “a Alemanha, a França e a Espanha opuseram-se à obrigação incondicional proposta de oferecer bilhetes únicos”.

A importância dos dados

As empresas ferroviárias são nacionais por natureza e por história. A parte do seu negócio que as viagens transfronteiriças representam é pequena; o rendimento provém principalmente dos caminhos-de-ferro nacionais.

Mas, para muitos activistas ferroviários, este pensamento nacional e a relutância em cooperar em matéria de bilhetes e direitos dos passageiros é uma das principais razões pelas quais os caminhos-de-ferro europeus transfronteiriços não estão a desenvolver-se como seria desejável.

“Estas questões simples poderiam na realidade ser resolvidas sem a construção de vias de alta velocidade”, diz Mark Smith. Entroncamento Enric Vives-Rubio

José Ramón Bauzá, deputado espanhol que participou nos trílogos como relator-sombra do grupo liberal no Parlamento, diz que os bilhetes únicos não eram negociáveis para o Conselho. No final, o Parlamento teve de aceitar o compromisso, ou arriscar-se a não receber nada, diz Bauzá.

Sobre os dados abertos, houve pouca negociação real no trílogo, recorda Bauzá. O Conselho argumentou que nem todas as empresas tinham a capacidade técnica e o Parlamento aceitou. “Esse ponto foi deixado um pouco mais desprotegido — isso é verdade”, diz o deputado espanhol.

De acordo com Jakop Dalunde, não havia ninguém na delegação do Parlamento que fosse realmente apaixonado e conhecedor da questão dos dados dos bilhetes abertos. “O foco [no trílogo] era mais sobre atrasos e bicicletas, o que também é muito importante. Mas não houve aquela atitude de ‘ou vai ou racha’ para avançar mais nas viagens ferroviárias europeias”, revela o eurodeputado sueco.