Modernização da Linha da Beira Alta demora mais do que a sua construção no séc. XIX
14/11/2022 19:26 - Público

Há dois meses, a IP mantinha Janeiro de 2023 para a reabertura da Linha da Beira Alta, mas em seis semanas a empresa deixou de se comprometer com qualquer data.

Modernização da Linha da Beira Alta demora mais do que a sua construção no séc. XIX

Foi à força de pá e picareta, e bastante dinamite, que entre Outubro de 1878 e Agosto de 1882 se construíram os 252 quilómetros da Linha da Beira Alta. No século XXI, a modernização de 201 quilómetros desta linha (o troço inicial entre Figueira da Foz e Pampilhosa foi encerrado) foi iniciada em 2019 e só deverá estar terminada em 2024.

Este prazo não se deve à dificuldade de se fazer obra com os comboios a passar, porque o grosso dos trabalhos decorre com a Linha da Beira Alta encerrada à circulação, para que os empreiteiros disponham das 24 horas do dia para operar ao longo daquela via férrea. A linha foi encerrada em Abril deste ano por um prazo de nove meses, mas agora a IP não se compromete com uma data para a sua reabertura.

Mais: a empresa não comunicou para o exterior, mas já informou os operadores ferroviários de que só em 2024 é que os trabalhos estarão integralmente concluídos. É isso que se pode ver na proposta do directório de rede para 2024 que a gestora de infra-estruturas submeteu à CP, Medway, Takargo (agora designada CapTrain) e Fertagus.

O directório de rede é o documento que estabelece anualmente as condições de circulação em todas as linhas férreas nacionais. Na proposta para 2024 há ainda afrouxamentos e interrupções de via para prosseguir com os trabalhos na Beira Alta.

O descontrolo neste projecto já soma alguns anos. O Ferrovia 2020 previa que as obras tivessem início no primeiro trimestre de 2018 para estarem terminadas em finais de 2019. Mas a primeira consignação só teria lugar em Julho de 2019 (para o troço Guarda-Cerdeira) seguindo-se Pampilhosa-Santa Comba Dão em Dezembro de 2020 e Guarda- Celorico em Julho de 2021.

Desde então, as obras foram avançando aos soluços, com interrupções de via durante a noite e aos fins-de-semana. Esperava-se, porém, que o grande “salto em frente” seria realizado, quando a Beira Alta estivesse encerrada durante nove meses entre 19 de Abril de 2022 e, supostamente, 19 de Janeiro de 2023.

Em Agosto deste ano, questionada pela PÚBLICO, a Infra-Estruturas de Portugal assegurava que “as obras estão a decorrer como previsto, embora a IP tenha vindo a ser informada, como em várias outras empreitadas, da existência de dificuldades no recrutamento de trabalhadores, na contratação de subcontratados e de alguns atrasos no fornecimento de materiais”.

Uma visita ao terreno, contudo, evidenciava que os trabalhos estavam atrasados e que seria impossível reabrir a linha no prazo estimado. Todavia, foi preciso esperar por 27 de Outubro para a IP admitir os atrasos. Em comunicado, a empresa divulgou que “os impactos decorrentes da pandemia de covid-19, o prolongar da guerra na Ucrânia, que tem afectado fortemente o mercado da construção, designadamente no tocante à disponibilidade e prazo de fornecimento de materiais de origem ferrosa, e as dificuldades sentidas pelos empreiteiros na contratação de subempreiteiros, obrigam a constantes adequações do plano de trabalhos, o que contribui de forma decisiva para a necessidade de prolongar o período de encerramento à circulação ferroviária na Linha da Beira Alta”.

Até quando? A IP não diz. Mas há um pormenor que permite inferir que serão, pelo menos, mais seis meses. A empresa explica que uma alteração ao projecto de alargamento do IP3 em Santa Comba Dão obriga à demolição de um viaduto ferroviário e à construção de um novo, motivo pelo qual aproveita para manter a linha fechada e realizar já essa obra”.

Esta intervenção iniciou-se no mês de Outubro, tendo um prazo total de execução de 270 dias (nove meses), pelo que, na melhor das hipóteses, os comboios só voltarão a passar na Beira Alta em Julho de 2023. Ainda assim, com restrições, porque seguir-se-ão mais interrupções de via temporárias, pelo menos, até 2024.

E é assim que, com os meios do século XXI, a modernização de uma linha já existente (na verdade, é uma reconstrução, porque toda a infra-estrutura é substituída) deverá demorar cinco anos, quando, no século XIX, milhares de homens sem quaisquer ajudas mecânicas romperam a orografia da Beira Alta para construir uma linha férrea.

A Gazeta dos Caminhos de Ferro de 1/09/1932 refere que os trabalhos, iniciados um mês antes do previsto, “foram decorrendo com toda a regularidade, sendo as terraplenagens executadas à razão de 297.734 metros cúbicos por mês, de começo, e por fim à de 308.936 metros cúbicos por mês, o que permitiu a execução dos seus 6.416.250 metros cúbicos de terraplenagens totais, antes do período para tal fixado, não obstante se tratar de abrir trincheiras em granito duro e de se ter de perfurar 11 túneis com 2778 metros de extensão”.

A Beira Alta sofreria a sua primeira grande modernização entre 1993 e 1996. Uma obra de 40 milhões de contos (200 milhões de euros, no câmbio directo, à data) que foi realizada em três anos e sem nunca se ter encerrado a linha. Os empreiteiros só tinham uma janela de seis horas durante a noite para efectuar os trabalhos.

Hoje, a própria ponte que agora vai ser construída sobre o IP3 – e que a IP apresenta como justificação para mais seis meses de linha fechada – poderia ser feita sem interromper a circulação dos comboios. Em 2004, quando foi alargada a A1 para três faixas entre Carvalhos e Santa Maria da Feira, a Linha do Vouga não teve de fechar para se fazer o alargamento da ponte ferroviária. E a Refer (hoje IP), desde que foi criada em 1997, tem vasta experiência de alargamento e substituição de viadutos ferroviários sem ter de encerrar as linhas, bastando, no máximo algumas interrupções pontuais aos fins-de-semana.

A presente modernização, que deverá custar mais de 500 milhões de euros, contempla a renovação integral de carris e balastro, construção de variantes e instalação de sistemas de sinalização e telecomunicações mais modernos. Mas, ao contrário da intervenção dos anos 90, a velocidade dos comboios não vai aumentar, porque o projecto foi concebido para o transporte de mercadorias.

Linha do Oeste continua parada

As obras da Linha do Oeste entre Meleças e Torres Vedras continuam paradas, embora em Junho passado o vice-presidente da IP, Carlos Fernandes, tenha afirmado que “a solução está encontrada e rapidamente [haverá] os meios em obra que permitirão arrancar de novo com este processo”.

A “solução” era a transferência da posição contratual entre dois empreiteiros, visto que o consórcio que trabalhava naquele troço não tinha sido capaz de dar conta do recado e abandonara os trabalhos em Março deste ano.

Apesar da promessa de que “rapidamente” os meios estariam em obra, até agora nada aconteceu. Em finais de Agosto, fonte oficial da IP dizia ao PÚBLICO que os trabalhos deveriam recomeçar “no início de Setembro”.

E, na semana passada, perante novo contacto do PÚBLICO, a IP respondeu: “Os trabalhos serão retomados no início de Novembro.”