Bruxelas quer uniformizar a bitola na ferrovia europeia e compromete nova linha Lisboa-Porto
03/09/2022 05:19 - Público

Novo contexto geoestratégico surgido com a guerra na Ucrânia aumenta a importância da Península Ibérica no transporte ferroviário de mercadorias para o abastecimento da Europa. Proposta não agrada ao Governo, que diz que a interoperabilidade plena não deve prejudicar a redução de emissões e a promoção do transporte colectivo.

Bruxelas quer uniformizar a bitola na ferrovia europeia e compromete nova linha Lisboa-Porto

A Comissão Europeia apresentou uma proposta para acelerar a migração da bitola na Península Ibérica e na Finlândia, onde a distância entre carris é diferente do padrão europeu em vigor na quase totalidade do continente.

Bruxelas quer que as linhas novas sejam construídas em bitola europeia e dá um prazo de dois anos para os países apresentarem um plano de migração das linhas que consideram que deverão ser reconvertidas até 2030. Fonte oficial da Comissão Europeia disse ao PÚBLICO que esta proposta destina-se a “reflectir os impactos nas infra-estruturas da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia” e visa “uma melhor interoperabilidade dos transportes ferroviários em toda a União e com países terceiros vizinhos”.

A mesma fonte diz que “globalmente, prevê-se que a migração para a bitola europeia tenha efeitos e impactos positivos” e que as dificuldades de exportação de cereais ucranianos por a Ucrânia ter uma bitola diferente da do resto da Europa “exemplificam a importância deste esforço”.

Em Portugal estas propostas não afectam as linhas que estão actualmente em obras, mas a Comissão diz que “qualquer nova infra-estrutura ferroviária da rede transeuropeia deve prever a bitola UIC de 1435 milímetros” (na Península Ibérica a distância entre carris é de 1668 milímetros). Isto abrange a linha de alta velocidade Lisboa-Porto que o Governo anunciou que seria construída em bitola ibérica e que está já em fase de projecto.

O PÚBLICO apurou que uma eventual reconversão desse projecto para a bitola europeia implica um atraso, no mínimo, de dois anos. Mas implica também uma mudança de estratégia radical porque o objectivo é que esta “auto-estrada ferroviária” esteja integrada na rede ferroviária portuguesa para que os ganhos de tempo nela obtidos se repercutam em vários destinos um pouco por todo o país, naquilo que se designa por “efeito de rede”. Se for construída de forma segregada do resto da rede, funcionará apenas como um corredor que servirá Lisboa, Leiria, Coimbra, Aveiro e Porto.

A própria execução deste projecto, tal como está previsto pela Infraestruturas de Portugal (IP), pode também estar comprometida pois previa-se uma construção faseada em que os comboios utilizariam a linha do Norte e a linha de alta velocidade à medida que cada troço fosse concluído.

Para obviar estes problemas poderá sempre instalar-se intercambiadores em alguns pontos da futura linha e usar-se comboios bi-bitola que, ao passarem por aqueles equipamentos, ajustam a distância das suas rodas à distância entre carris. É uma solução eficaz, mas implica mais investimento na infra-estrutura e comboios mais caros.

Governo discorda

Por isso, a proposta da Comissão não agrada a Portugal. Fonte oficial do Ministério das Infraestruturas e da Habitação diz que “Portugal tem estado em diálogo, quer com a Comissão Europeia, quer com outros estados-membros potencialmente afectados por esta proposta no sentido de que o novo regulamento das RTE-T [redes transeuropeias] não coloque em causa os projectos de expansão da rede ferroviária já em curso e planeados”.

Isto porque, defende o executivo, “o objectivo da interoperabilidade plena não deve prejudicar os objectivos de redução de emissões, promoção do transporte colectivo e de transferência modal para a ferrovia”.

O Governo diz ainda que o projecto da linha de alta velocidade Lisboa-Porto “está já numa fase adiantada do seu desenvolvimento e continua a ser feito de acordo com os regulamentos em vigor, com construção inicial em bitola ibérica, prevendo migração futura para bitola standard [europeia] através da instalação de travessas polivalentes”.

Estas travessas estão preparadas para que, a qualquer momento, os carris sejam levantados e recolocados de acordo com a nova bitola, ficando 23 centímetros mais próximos. O Ministério das Infraestruturas diz ainda que “é prematuro especular sobre que novas obrigações virão, efectivamente, ser criadas aos Estados-membros” e recorda que a proposta da Comissão será ainda discutida no Conselho e no Parlamento Europeu.

Até lá, partes significativas da rede ferroviária nacional e as ligações internacionais, que estão a ser intervencionadas no âmbito do Ferrovia 2020, estão a ser dotadas com travessas polivalentes “antecipando já a possibilidade de uma futura migração de bitola”.

Nas últimas décadas, a ideia da uniformização total da bitola na Europa tem sido recorrente, mas depara-se depois com os pesados custos – na ordem de muitos milhares de milhões de euros – desse investimento, claramente pouco prioritário face a outras necessidades. Por outro lado, a interoperabilidade está também por resolver ao nível da tensão eléctrica e dos sistemas de sinalização e telecomunicações usados nas diferentes redes ferroviárias.

A própria Comissão Europeia avançou com esta proposta sem ter realizado um estudo sobre a alternativa que seria manter a bitola e usar intercambiadores e material circulante de eixos telescópicos, que são tecnologias que permitem operar os comboios em linhas com diferentes distâncias entre carris.

Finlândia rejeita proposta de Bruxelas

A Finlândia, que por motivos históricos tem uma bitola igual à dos caminhos-de-ferro russos, está também na mira da Comissão Europeia, que quer as linhas finlandesas adaptadas ao padrão europeu.

Mas, de acordo com o Helsinki Times, o ministro dos Transportes e das Telecomunicações, Timo Harakka, já fez saber que "a Finlândia não aceita estas alterações na bitola e acredito que as nossas opiniões serão ouvidas durante novas discussões".

O governante considera que esta mudança “não seria economicamente viável” e que “decisões desta importância não devem ser tomadas apressadamente”, classificando a proposta de Bruxelas de “irracional e inaceitável para a Finlândia”.