Ferrovia transformada em ecopistas já ultrapassa a extensão da Linha do Norte
28/08/2022 18:45 - Público

Infra-estruturas de Portugal (IP) já reciclou 340 quilómetros de caminhos de ferro em percursos pedonais e cicláveis. Há quem lhes chame “ecovazias”, mas Viseu diz que é o seu “monumento” mais visitado

Ferrovia transformada em ecopistas já ultrapassa a extensão da Linha do Norte

Se as 14 ecopistas de Portugal fossem um percurso contínuo, a sua extensão já ultrapassaria a da Linha do Norte. Somados, são 339,6 quilómetros de ecopista, o nome que a Infra-estruturas de Portugal (IP) dá à transformação de percursos que foram linhas de caminho-de-ferro em pistas pedonais e cicláveis. A Linha do Norte, que liga a estação de Campanhã, no Porto, a Santa Apolónia, em Lisboa, tem 336 quilómetros de extensão.

Esta acaba por ser uma forma de reaproveitar as centenas de quilómetros de vias férreas que o país foi encerrando entre o final do século XX e o início deste. No entanto, nesse processo, surgem questões sobre o verdadeiro retorno dos investimentos que acabam por ser das autarquias e a responsabilidade do Estado central.

E a extensão de ecopistas vai continuar a crescer, com a empreitada de conversão da antiga Linha do Vale do Vouga, que deverá ser concluída em breve e atingir 56 quilómetros, ligando alguns dos 24,4 quilómetros de troços já existentes entre Sernada do Vouga e Viseu.

Para António Brancanes dos Reis, presidente da Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos-de-Ferro (APAC), as ecopistas são “a solução rápida e eficaz para a ausência de assunção de responsabilidades do Estado em relação ao domínio público ferroviário”. O Estado é, neste caso, a IP que se livra assim das suas obrigações sobre os traçados desactivados (e do património ferroviário que lhe corresponde) ao atirá-los para as autarquias.

As ecopistas são “a solução rápida e eficaz para a ausência de assunção de responsabilidades do Estado em relação ao domínio público ferroviário” António Brancanes dos Reis, presidente da APAC

O presidente da APAC diz que “há algumas ecopistas que até podem fazer sentido porque estão em troços de linhas que já não teriam viabilidade económica aos dias de hoje, mas há algum deste domínio público ferroviário que deveria ficar salvaguardado até ser descartada a sua potencial utilidade”. Um exemplo é a antiga linha do Dão, que poderia ter utilidade para voltar a ligar Viseu a Santa Comba Dão, ou a própria linha do Vouga que está desactivada entre Sernada e Viseu, que poderia ter sido utilizada para fins turísticos.

“Em algumas dessas ecopistas, depois da cerimónia do corta-fitas, há um período em que estas têm alguma utilização, mas depois acabam por ser votadas ao abandono”, diz Brancanes dos Reis, fazendo notar que estes equipamentos exigem uma manutenção periódica a expensas das autarquias.

“No fundo, isto é um jogo do empurra: a IP acena com as ecopistas junto dos autarcas e estes vão atrás do engodo, por vezes sem saber os verdadeiros custos de manutenção”, considera. “Depois vem o abandono e as ‘ecovazias’ transformam-se em ‘ecodegradadas’”.

O mais visitado

Viseu tem a maior ecopista do país: são 49,6 quilómetros de pavimento colorido (vermelho, verde ou azul, dependendo do concelho) que, décadas mais tarde, ocupou o lugar da Linha do Dão, encerrada em Setembro de 1989 e que ligava aquela cidade a Santa Comba Dão.

O presidente da Câmara Municipal de Viseu, Fernando Ruas, que foi eleito pela primeira vez meses depois do fecho da linha e que em 2021 regressou à autarquia, contraria a tese da “ecovazia”. Apesar de não ter dados de utilização, diz que o trajecto tem uma “ocupação diária impressionante”, de turistas a peregrinos que vão para Fátima”. “Se fosse um monumento, era dos mais visitados de Viseu”, garante.

Regra geral, tanto o canal ferroviário como o edificado “mantém-se na propriedade do Estado sob gestão da IP”, responde esta empresa ao PÚBLICO, referindo que “os custos com os investimentos, a conservação e manutenção das Ecopistas são dos municípios”. O único encargo da IP está relacionado com vistorias periódicas. Ao contrário da prática comum, o município adquiriu o canal à IP, explica Ruas. “Era a única forma de o preservar”, diz.

Neste momento, a discussão é outra: o Governo pôs em cima da mesa a possibilidade de servir todas as capitais de distrito com ferrovia. Acto contínuo, Viseu aproveitou a onda para pedir o regresso dos comboios à cidade. Nesse capítulo, ainda não há novidades, mas, em Setembro, “Portugal e Espanha vão discutir as ligações ferroviárias entre si”, lembra Fernando Ruas. “Talvez haja aqui uma janela de oportunidade para a ligação Aveiro – Viseu – Salamanca”, aponta.

O autarca garante que se a cedência de alguma parte da antiga Linha do Dão for condição para que o comboio regresse a Viseu, é o primeiro a abdicar dos terrenos da ecopista a favor da IP. Que impacto?

Em torno da ecopista do Dão nasceram negócios como o Abelenda Bike Rental, instalado às portas de Santa Comba Dão. Selinde Van der Spek e Peter Otte, dois holandeses que moram em Portugal há mais de década e meia, assumiram a operação desde 2021, depois de um amigo, que arrancou com a actividade há cerca de sete anos, se ter aposentado.

“Ele tinha alojamento local. Começou por alugar duas bicicletas”, conta Selinde. O interesse cresceu, a procura também. Antes, a pista era mais frequentada por estrangeiros, mas Selinde e Peter notam uma presença crescente de portugueses. Hoje têm 55 bicicletas e fazem também serviço de transfer para quem queira começar o percurso em Viseu e descer até Santa Comba. Subindo a pista em direcção a Viseu, com o azul do rio Dão a correr ao lado, encontra-se outra actividade que surgiu com a saída dos comboios: a antiga estação de Farminhão, foi convertida em estabelecimento de restauração.

No entanto, Brancanes dos Reis questiona o verdadeiro impacto económico que as ecopistas têm no território. “As ecopistas por si só não trazem desenvolvimento, mas fariam sentido num plano integrado de potencialização do território”, diz. “Por vezes, são um equipamento avulso que as autarquias acabam por ‘comprar’, até porque, compreensivelmente, para alguns presidentes de câmara, mais vale ter uma ecopista paga pelo município do que um canal ferroviário abandonado pela IP”, prossegue.

Daniel Conde, um transmontano que há décadas luta pela reabertura das linhas de via estreita, diz que a construção das ecopistas e ciclovias não é tão barata quanto se possa julgar e dá o exemplo da antiga linha do Tâmega, onde “cada três quilómetros de ecopista dava para reabrir um quilómetro de via-férrea”.

As contas são simples: quando, em 2009, a linha fechou entre Livração e Amarante, foi anunciado pela então secretária de Estado dos Transportes, Ana Paula Vitorino, que a reabertura custaria 14 milhões de euros . Mas Daniel Conde diz que esse montante era um exagero e indiciava já a vontade de não avançar com o investimento. Pelas suas contas, acompanhadas por alguns especialistas ferroviárias, seis milhões teriam bastado para reabrir a linha em segurança. No entanto, a transformação do canal ferroviário entre Amarante e Arco de Baúlhe (40 quilómetros) custou esses mesmos seis milhões de euros. “As obras da ciclovia foram feitas, curiosamente, durante o período da troika. Pelos vistos, o dinheiro que poderia ter reaberto parte da linha foi gasto nesse equipamento...”, lamenta Daniel Conde.

O activista chama ainda a atenção para a “inutilidade” das ecopistas e ciclovias na região dos “nove meses de Inverno, três meses de inferno”. Com temperaturas que oscilam entre os 35 graus no Verão (antes das alterações climáticas) a cinco negativos no Inverno, qual a probabilidade de haver muita gente a caminhar e a pedalar dezenas de quilómetros nestas infra-estruturas? Daniel Conde contesta, por isso, a transformação dos 80 quilómetros da antiga linha estreita de Mirandela a Bragança numa ciclovia, questionando também a sua utilidade social.

E dá um exemplo a Sul: “no antigo ramal de Montemor-o-Novo, a proprietária de um café na Torre da Gadanha queixava-se que as pessoas lhe passavam à porta, mas não paravam. É um mito pensar que as ecopistas proporcionam receitas no interior do país”. Mas, apesar de tudo, não é preferível ter as ecopistas do que terrenos abandonados pelo país? “É um falso argumento porque as ciclovias nunca foram precedidas de um estudo que calculasse os custos e os proveitos da reabertura do canal ferroviário”, responde. E recorda que “Trás-os-Montes tinha 300 quilómetros de linhas de via estreita e agora tem zero”.

Uma ecopista chumbada

Em breve, haverá outras somas aos 339,6 quilómetros nacionais de ecopistas. Depois do Vale do Vouga, Mirandela está a adaptar 13,7 quilómetros da antiga Linha do Tua, sendo que o Alentejo quer abrir a “Grande Rota do Montado”, refere a IP, que abrange Mora, Reguengos, Vila Viçosa e o troço desactivado entre Évora e Estremoz.

Também Coimbra tem um ramal ferroviário que quer transformar em ecopista. O ramal da Figueira da Foz ligava Pampilhosa (na Mealhada) à Figueira da Foz, pelo lado Norte do rio Mondego, passando por Cantanhede, mas o serviço foi interrompido em 2009. Este trajecto poderia servir de redundância à Linha do Norte, que passa pela margem Sul do Mondego e é frequentemente cortada por causa das cheias. Permitiria também uma ligação directa do porto da Figueira da Foz à Linha da Beira Alta, que é a principal ligação ferroviária a Espanha.

No entanto, no que toca à ferrovia, a Comunidade Intermunicipal da Região de Coimbra (CIM-RC) tem outras prioridades. Em 2020, o grupo de municípios assinou com a IP um contrato de subconcessão, para transformar a antiga linha em ecopista. A empresa pública assinalava então que o projecto terá “grande impacto na mobilidade sustentável das várias localidades”.

Opinião diferente teve a comissão directiva do Centro 2020, o programa de apoios comunitários junto do qual a CIM-RC procurava um apoio de 3,4 milhões de euros para instalar a ecopista. O projecto foi chumbado em Junho deste ano porque o Regulamento Específico Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos (RE SEUR) exclui vias ou vias pedonais “que tenham fins de lazer como objetivo principal”, responde a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro, ao PÚBLICO.

O Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), que também emitiu parecer desfavorável, assinala que a criação da pista “assume, não só, a sua forte componente para turismo e lazer”. O canal do ramal da Figueira da Foz poderia ser igualmente importante numa altura em que região discute o possível alargamento da rede de Metrobus (que ainda está em fase de empreitada, mas há-de ligar Coimbra à Lousã) a outros concelhos.

O secretário-executivo da CIM-RC, Jorge Brito, sublinha que, mesmo que a ecopista avance, “é possível mudar o uso do canal a qualquer momento”. E mais: será possível compatibilizar o Metrobus com a ciclovia, permitindo a multimodalidade. Tal como Ruas, defende que instalar uma ciclovia “é uma forma de salvaguardar o canal” que, neste momento, se encontra ao abandono.