“Alta Velocidade vai potenciar transporte ferroviário de mercadorias”
08/05/2022 04:50 - Público
Miguel Rebelo de Sousa, presidente da APEF, alerta que “os operadores ferroviários portugueses não estão a ter o mesmo tipo de apoios que os seus congéneres europeus”.
Para o presidente da Associação Portuguesa de Empresas Ferroviárias (APEF) é claro: “Temos de conseguir pôr a circular um comboio na rede ferroviária de forma tão fácil como um camião na rede rodoviária.” Miguel Rebelo de Sousa considera ainda que “o novo terminal para substituir a Bobadela deveria ficar na margem Norte”.
O que é a APEF e como se explica uma associação com apenas três associados? A Associação Portuguesa de Empresas Ferroviárias resultou da vontade de os operadores ferroviários de mercadorias se sentirem representados porque não havia nenhuma entidade que os representasse e defendesse os seus interesses. A APEF começou por ser constituída por dois associados – a Takargo e a Medway. Logo a seguir entrou a Captrain e agora, tendo em consideração a compra da Takargo pela Captrain, é provável que passemos a ser novamente só dois. Mas a associação não é exclusivamente para operadores de mercadorias. Estamos abertos a outras empresas.
E essa abertura a outras empresas corresponde a um desejo efectivo? A CP, que é o maior operador em Portugal, pode ser vossa associada? Se quiser pode ser associada, sim. Mas eu ponho a questão ao contrário: saber se a CP, que é uma empresa pública, que tem uma tutela própria, se sente à vontade em ter uma associação a representar os seus interesses.
E a Fertagus? Também pode entrar. Já tivemos algumas conversas informais com eles e estão interessados em juntarem-se à associação.
E a Continental Rail? Tem toda a legitimidade para se juntar e isso faz parte do nosso objectivo. Queremos congregar o máximo de operadores dentro da nossa associação porque só assim é que representamos o sector.
E, no entanto, por agora são três e em breve serão só dois... Mas isso [a compra da Takargo pela Captrain] é positivo. É um sinal de confiança na ferrovia nacional haver investimento directo estrangeiro em Portugal. Estamos satisfeitos em perceber que há essa dinâmica no país.
Uma das coisas que sugerimos foi sobre as estações nas fronteiras, que não estão neste momento pensadas. Precisamos de ter locais próprios para fazer a troca de locomotivas e para isso precisamos de espaço.
Quais são os grandes problemas do sector que gostariam de ver resolvidos? O nosso objectivo é garantir a competitividade do transporte ferroviário, quer seja através de uma infra-estrutura adequada, quer seja através de uma boa regulação económica que favoreça a concorrência e reduza os custos de contexto.
O que são os custos de contexto? É o que diz respeito a taxas e tudo aquilo que obriga os operadores a terem custos adicionais no âmbito da sua operação. Os operadores operam actualmente numa rede com pendentes acentuadas, o que limita a capacidade de transporte de carga por comboio, com velocidades reduzidas em grande parte dos eixos. A própria aquisição de electricidade tem um peso de cerca de 30% nos custos operacionais e os operadores não têm hoje forma de poder adquirir a mesma por sua iniciativa. São apenas informados do seu preço. Era importante, por exemplo, existirem estações de transição nas fronteiras que permitissem aumentar a eficiência da operação além-fronteira.
Há também a própria formação e contratação de maquinistas. Nós vemos em outros mercados, como Espanha, em que se promove uma adequação da procura e da oferta de trabalhadores, que são muito especializados, evitando assim uma canibalização dentro do sector.
O preço da energia no sector subiu 300%. Estamos a perder competitividade face à rodovia porque não estamos a ter nenhuma subsidiação para mitigar o aumento de custos.
Na vossa perspectiva, o que está a ser feito no Ferrovia 2020 corresponde às vossas necessidades? Nós vimos com bons olhos o Ferrovia 2020. É um plano de investimentos que o país precisa e que vai contribuir para melhorar a eficiência da rede e a operação do transporte de mercadorias. Aliás, o Ferrovia 2020 é feito com financiamento comunitário exactamente para esse fim.
E em relação ao PNI — Programa Nacional de Investimentos 2030, daquilo que já conhece, se dependesse de si, o que é que rectificaria? É uma pergunta difícil. Posso referir aquilo que no PNI 2030 pode ajudar a potenciar o transporte de mercadorias: é a linha de alta velocidade. Todo o eixo Lisboa – Porto e por aí fora até Vigo vai permitir potenciar imenso o transporte ferroviário de mercadorias porque vamos passar a ter mais canal disponível na linha do Norte, que fica liberta de grande parte do serviço de passageiros. E isso vai fazer uma diferença enorme na capacidade e competitividade do transporte de mercadorias.
Mas acho que o PNI 2030 está feito muito na lógica das infra-estruturas e esquece outras áreas. Por exemplo, ainda não está claro como é que vai ser feito o investimento em sinalização, nomeadamente nos sistemas ERTMS e ETCS pela parte dos operadores, que são quem tem o material circulante. O investimento por locomotiva para acomodar os novos sistemas de sinalização deverá ser superior a 500 mil euros, que é um valor relevante e que beneficia acima de tudo o gestor da infra-estrutura.
Defendem uma linha de financiamento para os vossos associados poderem suportar esse investimento? Existe um envelope de financiamento europeu disponível para financiar este investimento, mas era importante, no caso de Portugal, serem viabilizadas candidaturas ao abrigo do Fundo de Coesão porque tem comparticipações financeiras mais elevadas e está circunscrito a candidaturas de entidades portuguesas. Mas isto é uma decisão ao alcance directo do Estado Português.
A APEF deu alguns contributos para o Plano Ferroviário Nacional? Claro que sim. Uma das coisas que sugerimos foi sobre as estações nas fronteiras, que não estão neste momento pensadas. Precisamos de ter locais próprios para fazer a troca de locomotivas e para isso precisamos de espaço. É que nós podemos ter as linhas electrificadas nos dois países, mas as correntes são diferentes. Por isso vai ser sempre necessário fazer ali alguma adaptação.
A IP estudou cinco localizações possíveis para substituir o terminal de mercadorias da Bobadela: Castanheira do Ribatejo, Carregado, Rio Maior, Barreiro e Poceirão. Qual a melhor localização para APEF? É importante para o país ter um terminal de contentores como o da Bobadela. O que nós não queremos é que se caia numa situação em que, de repente, já se sabe que há data para sair do terminal da Bobadela e ainda não há uma alternativa escolhida. A nossa recomendação é que o terminal ficasse na margem Norte porque é muito mais eficiente.
Precisamos de combustível e de energia eléctrica para a nossa actividade e estamos preocupados, tem havido uma grande preocupação em garantir que há uma mitigação dos efeitos dos aumentos no transporte rodoviário, mas não estamos a sentir o mesmo no transporte ferroviário.
Sobram então Castanheira do Ribatejo, Carregado e Rio Maior, mas este último nem sequer tem via férrea. Pois não. Mas não nos cabe a nós tomar a decisão. O importante é que seja tomada de forma ponderada e depois rapidamente executada.
Mas a saída da Bobadela não corresponde a uma vontade vossa... Não. Por nós, ficávamos na Bobadela.
A linha da Beira Alta vai fechar para obras. Já chegaram a acordo com a IP sobre a forma como se vai processar a operação e as contrapartidas a obter pela não utilização daquele eixo ferroviário? Esse encerramento vai afectar bastante o transporte de mercadorias. Mas é preciso ter a noção que não é apenas a Beira Alta. Praticamente todos os grandes eixos para o transporte de mercadorias vão estar em obras nos próximos tempos. Sobre a Beira Alta, os operadores têm estado em conversações com a IP e gostaríamos que se conseguisse chegar a acordo antes da data de encerramento da linha [19 de Abril] porque é importante perceberem o que os espera no dia seguinte em termos operação e o que é que podem contar em termos de operações.
A alternativa é irem pela Beira Baixa, o que implica um aumento dos custos. Acha que vai haver uma redução na operação devido a esse constrangimento, ou vão conseguir responder a tudo mas com sobrecustos? O objectivo seria responder integralmente à procura, mesmo com sobrecustos, mas não sei se vamos consegui-lo porque vai haver claramente algumas ineficiências.
O aumento dos custos dos combustíveis é uma ameaça para o transporte ferroviário de mercadorias ou é uma oportunidade? No momento actual, o aumento desses custos tanto afecta o transporte ferroviário como o rodoviário. Mas nós precisamos de combustível e de energia eléctrica para a nossa actividade e estamos preocupados porque sentimos que tem havido uma grande preocupação em garantir que há uma mitigação dos efeitos destes aumentos no transporte rodoviário, mas não estamos a sentir o mesmo no transporte ferroviário. E aqui o problema não é não receber um apoio. É nós ficarmos com uma desvantagem competitiva por causa disso.
Mas é uma desvantagem ou uma vantagem competitiva, tendo em conta que, proporcionalmente, o aumento do combustível penaliza mais o transporte rodoviário? É uma desvantagem porque nós não estamos a ser subsidiados e o aumento dos custos é muito substancial. O preço da energia no sector subiu 300%. Estamos a perder competitividade face à rodovia porque não estamos a ter nenhuma subsidiação para mitigar o aumento de custos.
Vivemos um período um bocado caricato: por um lado, investe-se na infra-estrutura (e bem), mas por outro lado, os operadores portugueses não estão a ter o mesmo tipo de apoios que os seus congéneres europeus.
Mas há mais: os nossos concorrentes em Espanha têm uma subvenção directa dada pelo governo espanhol, o que lhes permite compensar o aumento dos custos e, para além disso, ao abrigo do PRR espanhol, a Comissão Europeia (CE) também aprovou que fosse permitido fazer um financiamento de 120 milhões de euros aos operadores ferroviários de mercadorias espanhóis.
Além disso, no período da pandemia, a própria CE também aprovou regulamentos que permitiam a cada Estado-membro poder atribuir alguns apoios às empresas ferroviárias para garantir a sua operação, nomeadamente com descontos na taxa de uso [portagem ferroviária]. Só que em Portugal não houve nada disso.
Vivemos um período um bocado caricato: por um lado, investe-se na infra-estrutura (e bem), mas por outro lado, os operadores portugueses não estão a ter o mesmo tipo de apoios que os seus congéneres europeus, nem o mesmo tipo de apoios dos seus concorrentes na rodovia. Ora isso faz com que seja difícil garantir a transferência modal da rodovia para a ferrovia, que é aquilo que é o grande objectivo do Governo.
Qual é quota de mercado do transporte ferroviário de mercadorias? Em Portugal temos uma quota de 14%.
O que é preciso fazer para a aumentar? Temos de conseguir pôr a circular um comboio na rede ferroviária de forma tão fácil como um camião na rede rodoviária. Precisamos de infra-estrutura que o permita, e estamos a fazer os passos certos para lá chegarmos.
Os corredores Norte e Sul e as ligações aos portos, se forem bem implementadas, vão ajudar bastante.
Depois temos que ter terminais de qualidade, preparados para receber comboios com 750 metros e com o serviço adequado à operação e isso não acontece. Existem terminais que neste momento só funcionam das 8h00 às 19h00 e só nos dias úteis. Ora, nós temos comboios a operar aos fins-de-semana e nos terminais dependemos de serviços essenciais como parqueamento de vazios, reparação e lavagem de contentores, entre outros, que podem ser realizados para lá destes horários.
É importante haver flexibilidade de serviços para se viabilizar uma operação 24 horas por dia, sete dias por semana. Também gostávamos de perceber um pouco melhor como é que vai funcionar o terminal do Porto de Leixões, tendo em conta a intenção de passar a sua gestão para a APDL.
Para além disso, andamos a dizer que queremos aumentar a quota modal do transporte ferroviário, mas tomamos decisões como a de acabar com o Terminal da Bobadela e ainda não temos uma decisão sobre qual a alternativa para o futuro, a qual, repito, tem de ser pensada com tempo.
Não viram com bons olhos a passagem do terminal de Leixões para a APDL? Não, não. O que nós queremos é que o terminal opere em condições que favoreçam o mercado. Dito isto, qualquer que seja a entidade - pública ou privada - nos serve.
E o que é preciso mais para aumentar a quota de mercado da ferrovia nas mercadorias? Deveria haver planos para incentivar o transporte que permitisse privilegiar a redução de emissões de carbono.
Só para dar o exemplo da linha do Oeste, em Pataias e Martingança temos infra-estrutura ferroviária junto às fábricas de cimento, mas este é inteiramente escoado por via rodoviária. Na Marinha Grande, temos a Santos Barosa, que é a maior fábrica de vidro da Península Ibérica, mesmo encostada à estação e que recebe e expede quase 300 camiões por dia e não transporta nada por caminho-de-ferro. Subimos um pouco mais e temos o terminal de mercadorias de Leiria que está completamente vazio. O que é necessário para que o comboio transporte mercadorias neste eixo? A linha do Oeste não potencia o transporte de mercadorias devido ao seu traçado sinuoso e às pendentes. Mas o maior problema nesta linha é a falta de competitividade com a rodovia porque a rodovia é muito competitiva. E é difícil combater essa competitividade com a infra-estrutura actual porque não está electrificada, precisa de sinalização, de capacidade para comboios de 750 metros e da eliminação de algumas pendentes mais acentuadas.
Para a APEF a bitola é um problema? Não, não é um problema. No mercado europeu existe a bitola europeia, a ibérica e outras. Mas também existem correntes eléctricas diferentes, sistemas de sinalização diferentes e muitos outros temas que, esses sim, do ponto de vista da operação, têm mais impacto do que a bitola. Para além disso, o que mais dificulta a capacidade de o transporte ferroviário de mercadorias poder ir além-fronteiras, e em especial da Península Ibérica para o resto da Europa, é o mercado francês. Há ali alguma dificuldade em obter canal para o transporte de mercadorias poder fluir para o resto da Europa.
Toda a gente conhece a história do antigo comboio da Autoeuropa que levava carros de Portugal para a Alemanha e que foi descontinuado porque ficava retido em França devido a falta de canal. Portanto a bitola nem sequer é um tema. Consegue ser contornado e não é por causa disso que deixamos de ser competitivos.