Moradores souberam pelas notícias que as suas casas podem estar em risco com a extensão do metro a Alcântara
02/05/2022 06:50 - Público

Moradores lamentam a falta de informação por parte da câmara e do Metro de Lisboa sobre o traçado de prolongamento da linha vermelha até Alcântara, que conheceram através da comunicação social e do estudo de impacto ambiental. Foi também assim que souberam que algumas das suas casas poderão ser demolidas.

Moradores souberam pelas notícias que as suas casas podem estar em risco com a extensão do metro a Alcântara

Quem sobe a Calçada do Livramento, em direcção ao Palácio das Necessidades, encontra à esquerda um pequeno pátio escondido que Isaura Fernandes gostaria que não desaparecesse. “É que se ouvem os passarinhos. Gosto de aqui estar.” A mulher de 71 anos vai mostrando os vasos que tem à volta da sua porta, uma árvore de banana-pão num pequeno jardim. “Tenho aqui as minhas plantas, as minhas flores, os meus vizinhos. Vai-me custar muito, se tiver de sair daqui. Porque é que a linha tem de passar aqui?”

As notícias começaram a surgir na semana passada e apanharam os moradores da zona desprevenidos. Há um plano para a linha vermelha do metro se estender para lá de São Sebastião e chegar a Alcântara. Há até dinheiro que virá da Europa para a obra e um estudo de impacto ambiental (EIA) que revela o andamento de um projecto sobre o qual os moradores nada sabem. Para os carris chegarem mesmo àquela zona da cidade há muito que terá de ser mexido, como casas e quintais de quem ali mora, e até um prédio que será esvaziado e por onde passará um viaduto.

Isaura Fernandes mora numas pequenas casas no rés-do-chão do prédio onde funciona também a Casa de Goa. Ali chegou realojada de Benfica há mais ou menos 20 anos e teme agora um futuro realojamento, se a linha de metro vier mesmo a passar pelas imediações da sua casa e o seu “quintalinho” servir de estaleiro de obra. “Com a idade que eu tenho assusta-me bastante. A gente adapta-se a um sítio e pensa que é para sempre. E na volta…”

Essa má memória de um realojamento demorado e penoso está ainda muito presente em Inês Santos, de 39 anos, ali nascida e criada, que recorda todo o processo de há duas décadas, quando dezenas de moradores dos dois pátios que ali existiam foram realojados noutras zonas da cidade. Ela e o pai acabaram por conseguir ficar numa das 12 casas que restam. “Nós sofremos para conquistar isto aqui”, diz. Por isso, enfrentar a ideia de um novo processo deixa-as angustiadas.

Casa de Goa afectada

Que projecto é, afinal, este? Será o prolongamento da linha vermelha do Metro de Lisboa a partir da estação de São Sebastião até Alcântara, num novo trajecto com cerca de quatro quilómetros, com novas estações nas Amoreiras, no Jardim da Parada (Campo de Ourique) e na Avenida Infante Santo. E que terminará depois num troço em viaduto, com cerca de 380 metros, que dará origem à estação de Alcântara, que ficará por cima da rampa de acesso à Ponte 25 de Abril.

Estão previstos três anos de obras e 304 milhões de euros (financiados via Plano de Recuperação e Resiliência) para ligar todos estes pontos por um túnel, mas será na construção da recta final em viaduto que estão previstos mais impactos: a demolição de edifícios nas ruas da Costa, Maria Pia e Travessa do Livramento, entre as quais a casa de Isaura e dos vizinhos e a Casa de Goa, parte do Baluarte do Livramento, uma estrutura militar do século XVII, e a demolição e posterior reconstrução de prédio na Rua da Costa, próximo da estação de Alcântara-Terra.

“Até hoje nunca ninguém foi ao prédio. Apercebemo-nos de que houve obras, estudos, em frente, mas não sabíamos para o que era”, diz António Gomes, morador há mais de 20 anos e administrador do condomínio deste prédio, que será esvaziado para ser atravessado pelos carris do metro.

Ali moram oito famílias e há quatro lojas. Na mercearia do prédio, José da Cunha Ramos, de 69 anos, também lamenta nada saber. “O que a gente sabe é pela comunicação social.” Por isso, ele, que ali está há mais de meio século, de onde só saiu para ir dez meses à tropa, assusta-se com o futuro da mercearia, que até já serviu de cenário para uma sessão fotográfica de uma revista estrangeira. “Temos clientes há anos. Quase com 70 anos ir fazer uma coisa de novo. E estes velhotes no fim da vida vão andar com a casa às costas?”

Na Casa de Goa, também pouco se sabe, além do que vai sendo noticiado. “Estamos vivamente interessados em continuar ali e em preservar aquele espaço”, diz José Rodrigues, vice-presidente da Casa de Goa, cujo edifício foi cedido à associação há mais de duas décadas, quando João Soares era presidente da câmara.

Pelo que vê no estudo, acredita que os trabalhos destruirão os ateliers e porão também em causa o restaurante que ali existe – e que deverá reabrir em Maio, com nova gerência.

Em causa estarão também as 12 casas do pátio onde mora Isaura (seis pertencem à autarquia e as outras seis estão cedidas à Casa de Goa). “É uma situação que nos deixa bastante tristes. Não sabemos para onde vamos”, lamenta José Rodrigues.

Da parte do Metro dizem não ter qualquer informação sobre o que vai ali acontecer. Há duas semanas apareceu uma equipa da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) para uma visita de trabalho ao espaço.

Além da proximidade do baluarte e de uma das suas guaritas — em muito mau estado de conservação, “deplorável”, como classifica o EIA, presa com umas cintas para evitar que desmorone —, o Palácio das Necessidades (classificado como imóvel de interesse público) está também próximo, prevendo-se inclusive que o metro passe por debaixo de parte do complexo do palácio.

O túnel terminará para depois sair em viaduto precisamente junto à muralha do Baluarte do Livramento. Implicará por isso o “desmonte parcial de um troço da muralha histórica que delimitava a antiga estrutura de defesa e a sua consequente reconstrução”. Serão suprimidas “apenas algumas estruturas arquitectónicas recentes – Casa de Goa e Pátio dos Quintalinhos, que permitirão a consolidação e valorização do Baluarte do Livramento”, refere ainda o estudo.

Nesse documento, o Metropolitano de Lisboa refere que tem “efectuado inúmeros contactos com a Câmara de Lisboa sobre as intervenções a realizar no Baluarte do Livramento” e que a documentação que tem vindo a ser preparada foi já remetida à DGPC – nomeadamente, um pedido de informação prévia (PIP) autónomo relativo à intervenção prevista, que foi entregue a 4 de Abril. Isso mesmo confirma a DGPC ao PÚBLICO, referindo que o PIP se encontra “em fase de apreciação técnica para efeitos da elaboração dos respectivos pareceres de arquitectura e de arqueologia”.

Projecto de Aires Mateus

Apesar de o estudo prever impactos em toda as zonas, a demolição de edifícios de habitação e comércio será das maiores consequências desta obra, prevendo-se que ocorram em maior número no troço entre o Largo das Necessidades e a travessia da Avenida de Ceuta, obrigando a expropriações definitivas e temporárias.

O PÚBLICO questionou a Câmara de Lisboa e o Metropolitano sobre o número de expropriações a realizar, bem como se existe já um plano de realojamento para as famílias afectadas, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.

Junto ao que será a nova estação de Alcântara estão também previstas escavações que “confrontarão edificações, arruamentos e infra-estruturas contíguas cuja estabilidade e operacionalidade poderão ser afectadas”, refere o EIA. A planta de expropriações que integra o estudo prevê também que sejam realizadas algumas nessa zona.

A ideia é que a nova estação se localize, em altura, por cima da rampa de acesso à Ponte 25 de Abril, nascendo assim uma nova interface de transportes na capital. O piso superior está destinado ao cais do metro, o intermédio ao átrio da estação e o inferior fica reservado para a futura linha de metro de superfície ligeiro (o Lios). Este projecto, cuja construção está em estudo, poderá permitir a ligação a Oeiras, via Ajuda, Belém, Algés, Linda-a-Velha e Cruz Quebrada/Dafundo.

O estudo refere ainda que após a estação de Alcântara o metro vai circular enterrado em túnel numa extensão de 483 metros, ficando “implantado o término do prolongamento da linha vermelha com três vias, cujo alinhamento está projectado de forma a viabilizar um futuro prolongamento até à zona de Algés”, tendo em conta as fundações dos pilares da Ponte 25 de Abril.

O projecto de arquitectura prévio da estação e do viaduto é do gabinete de Manuel Aires Mateus, que tem vasta obra em Lisboa, como a Reitoria da Universidade Nova de Lisboa ou a sede da EDP, na Avenida 24 de Julho, ambos reconhecidos com o Prémio Valmor. E prevê também a reconstrução das paredes exteriores do prédio da Rua da Costa que será “interceptado” pelo viaduto para serem “conservadas as características originais da fachada principal”, hoje revestida a azulejos. “Há ali uma frente urbana pela qual o metro passa que não podemos esventrar”, disse o arquitecto ao PÚBLICO, justificando a opção.

Esta nova estação, acredita o Metropolitano, contribuirá “para ajudar a resolver a ‘ferida’ aberta no território da freguesia de Alcântara com a construção dos acessos à Ponte 25 de Abril há cerca de 50 anos, terminando com o isolamento a que ficaram sujeitos os moradores do bairro ladeado pela Rua da Cascalheira e pela Rua do Alvito”.

Este prolongamento trará mais 11 milhões de passageiros para a rede e permitirá uma melhoria nas ligações do transporte público à Estação de Alcântara-Terra, à Linha de Cascais e, espera-se, ao futuro Lios. O projecto está em consulta pública no Portal Participa até 2 de Junho. Após este período e analisados os contributos dos cidadãos, caberá à Agência Portuguesa do Ambiente (APA) emitir ou não uma declaração de impacto ambiental (DIA), sem a qual o projecto não pode avançar.