“As pessoas não sabem que o Museu Ferroviário existe”
25/04/2022 05:58 - Público

Manuel Novaes Cabral, presidente da Fundação Museu Nacional Ferroviário, centrou-se numa “prioridade absoluta” durante dois anos: a alteração dos estatutos da fundação com vista a estabilizar financeiramente a fundação.

“As pessoas não sabem que o Museu Ferroviário existe”

Foi nomeado presidente da Fundação Museu Nacional Ferroviário a 1 de Fevereiro de 2020, precisamente no início da pandemia, para uma instituição que já se encontrava debilitada financeiramente e que viu reduzidas as suas receitas próprias devido ao confinamento.

A alteração dos estatutos é um mero cumprimento jurídico ou vai ter um real impacto na governança e no financiamento da instituição? Vai ser impactante no financiamento da instituição porque lhe vai dar estabilidade.

Como estão as contas? As contas estão bem... Nós não somos financiados pelo Orçamento do Estado, mas sim pelos nossos principais stakeholders que são a CP e a IP [Infra-estruturas de Portugal]. Em todo o mundo há museus privados, mas há sobretudo museus públicos financiados por entidades públicas (estatais ou regionais). Cá em Portugal isto passou pela criação de uma entidade autónoma, neste caso uma fundação, que não é só um museu, mas que exerce também a preservação e divulgação do património ferroviário nacional. E deixe-me dizer que nós temos um património absolutamente excepcional porque não sofremos o impacto das duas guerras, nem nenhuma guerra civil devastadora como foi a de Espanha, onde o caminho-de-ferro era um alvo, pela sua importância, tendo ficado destruído.

Mas, neste momento, as receitas do museu representam quanto do vosso orçamento? O nosso orçamento ronda um milhão de euros e as nossas receitas próprias, que são a venda de bilhetes e o aluguer de espaços no museu, são cerca de 20%. Isto em época pré-covid, porque a pandemia veio alterar tudo para pior. Os restantes 80% são, grosso modo, financiamento da CP e da IP.

E aquelas empresas fundadoras, nomeadamente a Opway, a Siemens, a Sacyr, a Elevo, não contribuem? Há sobretudo uma empresa que nos dá algumas verbas anualmente, de forma voluntária, que é a Medway.

Temos um património [ferroviário] absolutamente excepcional porque não sofremos o impacto das duas guerras, nem nenhuma guerra civil devastadora como foi a de Espanha

A situação financeira esteve tão má que a CP e a IP chegaram a comprar bilhetes ao museu para oferecer aos seus funcionários a fim de vos proporcionar algumas receitas para pagar ordenados. Sim, mas também não me parece mal que o façam. E foi claramente em resposta a uma contingência. A nossa preocupação é que, com os novos estatutos, fique absolutamente definido quem é que paga, havendo também outras entidades que entrarão também no pacote de financiamento, sendo certo que a CP e a IP serão sempre as grandes financiadoras. Isso é lógico, porque noutros países são estas empresas que têm a função da preservação e da promoção do património ferroviário e, aqui, a CP e a IP não têm essa função porque foi externalizada para a Fundação Museu Nacional Ferroviário. Foi essa a opção política tomada.

Mas o que muda, se vão continuar a ser a CP e a IP a pôr cá o dinheiro? Até agora era através de protocolo. Depois vai passar a ser definido por lei que o financiamento se procederá desta forma. Mas temos de encontrar formas de envolver os nossos stakeholders, os fundadores, os equiparados a fundadores, que na altura entraram com dinheiro, mas não estão comprometidos com uma participação anual. Para isso temos de nos relacionar de uma forma mais estreita com eles e de os envolver no nosso trabalho e eles perceberem que nós também lhes podemos ser úteis.

Quais são as suas prioridades? A prioridade foi a mudança dos estatutos. Se eu lhe falasse das minhas dez prioridades, eu não teria prioridade nenhuma porque eu não tenho condições para fazer 500 coisas. Eu gostava muito de avançar, por exemplo, com o alargamento do nosso espaço, porque temos ali uma jóia que é a antiga central eléctrica. Mas isso não é possível sem ter resolvido o problema dos estatutos e do financiamento. Nós não queremos ser apenas um museu, nesta perspectiva tradicional, estática, mas sim uma casa que é activa e que presta serviços.

Mas com os novos estatutos vai passar a haver um modelo de negócios para a fundação? Os estatutos vão-nos dar, acima de tudo, estabilidade institucional e financeira. Por exemplo, nós hoje temos 19 funcionários. Em 2015, quando o museu abriu, eram 32. Os estatutos vão-nos permitir também – e porque somos uma fundação pública de direito privado – contratar facilmente mais pessoas, que vão ser essenciais para o tipo de trabalho que nós aqui queremos desenvolver. Temos cerca de 15 voluntários, pessoas que gostam de comboios, da ferrovia, do museu, e que vêm cá trabalhar connosco com regularidade. Só recebem subsídio de alimentação. O voluntariado é importante para nós, pois esse trabalho é muito útil e reforça a ligação com a comunidade.

A directora do museu saiu no ano passado. O que é necessário para haver novo director? É abrir um novo concurso. Ainda não o fizemos porque entendemos que as coisas têm estado a funcionar bem e que ainda não era o momento para abrir concursos. Vamos repensar tudo isto quando tivermos a nossa vida estabilizada com os estatutos.

Está a dizer que não tem feito falta um director? O modelo que existia era muito centrado na figura do director e menos nas chefias intermédias. Com a saída da então directora, a Dra. Maria José Teixeira passou também a coordenar transitoriamente os serviços do museu. Hoje trabalhamos muito bem, ela e eu próprio, directamente com essas chefias. É claro que é importante ter um director, que também tenha funções de programação. Trataremos disso quando tivermos os estatutos aprovados.

O Centro Nacional de Documentação Ferroviária, que tinha o espólio do IMT e da antiga DGTT [Direcção Geral dos Transportes Terrestres] chegou a funcionar na gare do Oriente, sob a égide da fundação, com cinco pessoas e agora só lá está uma. O que é feito desse espólio? O espólio do IMT [Instituto da Mobilidade e dos Transportes] retornou à casa mãe, ainda antes de eu ter vindo para cá, mas tenho falado com o seu presidente e há um princípio de acordo para que a documentação que cá esteve volte para cá.

Nós não queremos ser apenas um museu, nesta perspectiva tradicional, estática, mas sim uma casa que é activa e que presta serviços.

Havia também um projecto para digitalizar esse espólio. Como ficou isso? Havia, de facto, esse projecto, mas não avançou de acordo com o programado, acabando o espólio por ser devolvido ao IMT. Entretanto, temos aqui ao lado do museu o chamado Bairro do Boneco, que era um bairro ferroviário que foi cedido pelaIP à Câmara do Entroncamento. Ora o município já abriu concurso para fazer lá três coisas em parceria connosco: o Centro de Documentação Ferroviária (que vai incluir aquele fundo do IMT e o que ainda temos na gare do Oriente), um centro de Ciência Viva ligado à ferrovia e um centro de ferrovia militar que tira partido desta ligação entre o Entroncamento e o polígono militar da região que envolve as unidades do Entroncamento, Tomar, Tancos, Sta. Margarida, Abrantes.

Uma pessoa que chega à estação de Santa Apolónia não tem um único cartaz a anunciar que há um museu ferroviário no Entroncamento a uma hora de Lisboa e com grande frequência de comboios... Esta casa teve sempre como foco desde 2015 a preocupação de aumentar o número de visitantes. Eu não tenho essa preocupação e espero não ser mal interpretado. O meu foco é fazer com que o museu seja conhecido e reconhecido. Há um défice muito grande de conhecimento deste museu. As pessoas não sabem que ele existe. Ora com os estatutos aprovados, a minha prioridade vai ser com que o museu seja muito conhecido e é com isso que virão mais visitantes.

O Plano de Recuperação e Resiliência tem inscrita uma referência ao turismo ferroviário. O Foguete, um comboio icónico, aguarda há décadas para ser recuperado. Há alguma candidatura prevista para recuperar esse material? Passa-se o mesmo que com a central eléctrica. Só posso apresentar uma candidatura se tiver um projecto aprovado. E vamos fazer o ante-projecto para encomendar o projecto para estarmos preparados para, se houver uma oportunidade, candidatarmos a reabilitação da central eléctrica. Ora isto aplica-se também ao Foguete e a outros projectos que nós temos, nomeadamente nos núcleos museológicos. Já falamos com a CP sobre o Foguete no sentido de se avançar com essa reabilitação e existe essa vontade política.

O meu foco é fazer com que o museu seja conhecido e reconhecido. Há um défice muito grande de conhecimento deste museu.

Em relação ao Comboio Presidencial falta ainda realizar uma época com o empresário que o explorava? O contrato que havia com o Museu era para os anos de 2018, 2019 e 2020, mas tudo parou em 2020 e estamos em conversações com o empresário Gonçalo Castelo Branco para encontrar uma solução. Nós não temos culpa da pandemia, mas também não somos insensíveis ao que aconteceu. Enfim, está tudo encaminhado para que haja a substituição da época de 2020.

Tendo em conta que o Presidencial já rodou mais quilómetros nos últimos anos enquanto produto turístico do que enquanto comboio presidencial durante décadas, e dado tratar-se de uma peça frágil, com carruagens antigas, o que está previsto para a sua utilização no futuro? O Comboio Presidencial é um instrumento muito útil para o turismo e para a promoção de Portugal. Uma vez que lhe foi feita uma reabilitação dinâmica (se fosse uma reabilitação estática, ele estaria aqui parado apenas como peça de museu), a composição está disponível para operações comerciais. Mas nós não temos um projecto para o comboio. Estamos disponíveis para sermos abordados e estudar em conjunto a possibilidade de o dinamizar nesta perspectiva – ser útil para Portugal e para o turismo. E também para outra coisa, que é a divulgação e promoção do novo discurso sobre a ferrovia. Não queremos ser um museu na perspectiva tradicional, só para ser visitado. Nós queremos ser elemento desse novo discurso voltado para o futuro.

O museu tem no seu espólio automotoras antigas eléctricas e a diesel, e, por exemplo, as carruagens Budd e B600 (que circularam muito no Alentejo e Algarve). Nessa perspectiva, está prevista a sua recuperação dinâmica para viagens com fins turísticos? Estatutariamente, nós podemos ser parceiros em projectos desse género. Mas não temos tido condições para o ser. No futuro poderemos sê-lo, com parceiros públicos ou privados. Mas o nosso papel é a preservação e reabilitação e dinamização de exemplares que sejam relevantes de cada época. Não temos que ter 20 exemplares iguais, a não ser num projecto desse género.

Quantos veículos aguardam para serem reabilitados e incorporados no museu? Temos 18 veículos a aguardar restauro, alguns deles já incorporados na colecção do museu, dos quais três são para ficarem aptos a circular na rede ferroviária nacional: duas locomotivas diesel e o Foguete. Os outros 15 são essencialmente carruagens, vagões e locomotivas e destinam-se a figurar no museu. E temos ainda quatro veículos em fase de restauro: dois vagões, uma locomotiva a vapor e uma automotora.

O Comboio Presidencial é um instrumento muito útil para o turismo e para a promoção de Portugal. (...) E também para outra coisa, que é a divulgação e promoção do novo discurso sobre a ferrovia.

Temos uma oficina no museu. Sempre achei importante que a oficina integrasse o circuito do museu para as pessoas verem in loco como se faz a recuperação do material, o que vai acontecer muito em breve. Há ainda uma lista de material que existe um pouco por todo o país e que está a ser avaliado por nós e pela CP para passar a ficar sob a nossa tutela.

Quanto às secções museológicas, quais estão a funcionar? A funcionar temos Arco de Baúlhe (Cabeceiras de Basto), Bragança, Lousado e Macinhata do Vouga (Águeda). Encerradas temos Lagos, Chaves e Valença. A gestão dos núcleos museológicos é feita com as câmaras municipais. É preciso investimento em praticamente todos, mesmo naqueles que estão abertos, com excepção de Bragança e Arco de Baúlhe, que estão impecáveis. Em Chaves, estamos em conversas com o presidente da Câmara, mas não há projecto. Em Lagos há particulares interessados em desenvolver um projecto connosco. Não pomos isso de parte, desde que se mantenha a essência da ferrovia e haja o acordo da câmara. Em Valença, há um projecto a andar, mas como o edifício com o material histórico está no meio das linhas, o espólio vai passar para outro edifício que dá para o largo da estação por forma a ser mais seguro e fácil visitá-lo. Em Macinhata do Vouga há um projecto de ampliação com uma nova nave a desenvolver pela câmara. Em Lousado também há um projecto em curso com a câmara.

Se tiver que escolher, quais são para si as três peças mais significativas do Museu do Entroncamento? O Comboio Real, claramente. Depois, uma peça que, curiosamente, nem é nossa mas sim do Museu de Lisboa, que é a Liliputienne – uma locomotiva a vapor em miniatura que foi oferecida pelo rei Louis Philippe à família real portuguesa para os príncipes brincarem. Aliás, diz-se que foi o contacto com essa tecnologia do vapor, à época verdadeira tecnologia de ponta, que levou D. Pedro V em adulto a ser um impulsionador do caminho-de-ferro em Portugal. Esse comboio tinha várias carruagens e foi por volta de 1880 oferecido pela família real à cidade de Lisboa e utilizado para animar o Passeio Público.

A terceira peça é um mapa digital, não muito tecnológico, onde se vê a construção e o crescimento do caminho-de-ferro em Portugal desde 1856 e que tem importância pelo que ele mostra: um investimento brutal no caminho-de-ferro do séc. XIX até à I República, depois um quase desaparecimento desse investimento até 1989 em que se fecharam 1300 quilómetros de vias. E eu sublinho isto porque gostava que este mapa nos próximos dez anos tivesse um crescimento muito grande.