Sobrecarregados, esgotados e com medo de atropelamentos. Assim estão os maquinistas portugueses
07/04/2022 07:01 - Público
Dois estudos apresentados esta quinta-feira pelo Sindicato dos Maquinistas apontam para uma degradação das condições de trabalho, com os consequentes riscos para a segurança.
Sobrecarregados por horas extraordinárias e escalas cansativas, sem tempo para a família, com medo de falhar e traumatizados por acidentes graves em que estiveram envolvidos, nomeadamente, atropelamentos. O retrato dos maquinistas ferroviários portugueses, traçado por dois estudos relacionados com a sua qualidade de vida e os factores de risco associados à profissão, é preocupante. Ouvidos directamente, num conjunto de reuniões com grupos focais, eles apontam as escalas rotativas de trabalho e a má qualidade do material que operam como os principais factores de desgaste.
Os números saídos do conjunto de estudos que o Sindicato dos Maquinistas (SMAQ) irá tornar públicos esta quinta-feira são suficientemente preocupantes para fazer soar alguns sinais de alarme: 54% diz sofrer de trauma intenso; 59% afirma estar esgotado algumas vezes por mês ou semana (burnout); 53% diz ser afectado “muitíssimo” pelo medo de atropelar alguém; 65% já esteve envolvido em acidentes com vítimas mortais e 61% já sofreu algum tipo de acidente de trabalho. Os resultados estão expressos em dois estudos agora revelados, o Inquérito o Nacional às Condições de Vida e de Trabalho dos Maquinistas Ferroviários em Portugal, deste mês de Abril e realizado pelo Observatório para as Condições de Vida e do Trabalho, da Universidade Nova de Lisboa e do Instituto Superior Técnico, e Factores de desgaste psicológico e trauma nos maquinistas da ferrovia portuguesa, concluído já em Janeiro de 2021, depois de ouvidos 690 trabalhadores, e desenvolvido pela Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto. Desgaste psicológico
Para chegar a estes dados foram apresentados questionários a trabalhadores de diferentes empresas ligadas à ferrovia, com os resultados a apontarem para alguma discrepância entre elas. Os investigadores que analisaram os factores de desgaste psicológico concluem, por exemplo, que há “mais desgaste no metro do que no [comboio de] longo curso e regionais, embora estes apresentem mais trauma”. O sono – referido pelos inquiridos como um factor de risco, associado ao trabalho repetitivo e às longas horas de serviço – também parece estar mais associado à actividade realizada pelos que operam o serviço de metro, “sobretudo o Metro Sul, do que a CP”, refere-se neste documento.
Outros dados relevantes que se retiram do inquérito deste ano (e que recolheu 610 respostas de trabalhadores de sete empresas) indicam que 94% dos maquinistas faz trabalho extraordinário, enquanto 75% diz não ter tempo livre para a família e para si próprios. E esta questão entronca directamente com as principais queixas apresentadas por 15 voluntários que participaram em grupos focais organizados pelo Observatório, no âmbito deste inquérito, para ouvir dos próprios maquinistas as questões que mais os preocupam. Esta abordagem mais “qualitativa” dos problemas identificados pelos maquinistas permitiu perceber que as duas grandes questões mais prevalentes são as escalas e o material motor. “De uma forma geral, praticamente todos os voluntários apresentaram queixas sobre um ou sobre ambos os tópicos”, concluem os investigadores.
Sobre a escala rotativa, os horários irregulares, o trabalho nocturno, os poucos dias de antecedência com que o horário de trabalho é conhecido e a sonolência associada a turnos longos estão entre as principais queixas ouvidos pela equipa do Observatório. Os investigadores ouviram também o descontentamento com o recurso frequente ao trabalho extraordinário, que consideram ser “uma forma de dissimular a insuficiência crónica de maquinistas”. Contudo, os maquinistas também admitiram que “o acréscimo de remuneração obtido através do trabalho extraordinário é procurado por muitos colegas”, para compensar o que consideram ser um salário base “insuficiente”. Material “velho"
Já sobre o material motor com que têm de trabalhar, os maquinistas não foram parcos nas críticas. Consideram-no “ultrapassado, velho”, “obsoleto e inadequado”, refere o relatório sobre estes grupos focais. E, também aqui, há casos piores do que outros. “Certas regiões do país seriam deste ponto de vista particularmente desfavorecidas, pois herdariam os ‘restos’ de outras linhas, ou seja, ficariam com o material antigo e usado, sem nunca beneficiarem de renovações reais das locomotivas e carruagens”, refere-se.
Todas estas situações contribuem para “uma degradação” das condições de trabalho e, consequentemente, “uma degradação da segurança”, concluem os investigadores do Observatório. Talvez por isso (ou também por isso), 66% dos participantes no inquérito nacional “pensa no tempo que falta para a reforma”, o que os investigadores consideram “um valor altíssimo”, sobretudo se se tiver em conta que “o trabalho devia ter um efeito protector se realizado em boas condições”.
Mas nem tudo são más notícias. O inquérito também revela que 78% dos maquinistas nunca pensou mudar de emprego e 76% nem sequer considerou mudar de empresa, enquanto pela cabeça de 86% nunca passou a ideia de emigrar. Além disso, estamos perante um conjunto de profissionais experientes – a grande maioria tem mais de 10 anos de experiência no sector – e que ainda encontra factores positivos e de incentivo no seu trabalho. Entre os voluntários que participaram nos grupos focais do Observatório a utilidade do trabalho realizado ou a gratidão, por vezes, expressa pelos passageiros foram apresentadas como fonte de prazer no trabalho, com os trabalhadores a referirem, por exemplo que gostam “de levar milhares de pessoas para o trabalho todos os dias” ou: “Quando uma pessoa agradece por termos parado, às vezes compensa os insultos dos outros todos”.