De Bragança a Madrid leva-se uma hora para fazer 45 quilómetros e duas para percorrer 334
21/02/2022 07:00 - Público
Bragança é a cidade portuguesa mais próxima de uma estação de alta velocidade, mas de pouco lhe serve, enquanto não houver uma nova estrada que permita aceder ao comboio rápido, que só demora duas horas até Madrid.
Bucólica, bonita, agradável. A estrada que liga Bragança a Rio de Onor surpreende pela paisagem. Não por acaso atravessa o Parque Nacional de Montesinho. Faz-se bem em ritmo de passeio, a recrear a vista, mas não é a melhor alternativa para ligar duas localidades como Bragança e Puebla de Sanabria.
O problema é que não há alternativa e os brigantinos, os sanabreses e uma grande parte dos habitantes da província de Leão só podem contar com esta estrada antiga cheia de curvas que faz desesperar quem nela circula na sua vida diária, ou quem tem pressa de fazer a ligação entre Trás-os-Montes e o Norte de Espanha.
Do lado espanhol, depois de se atravessar Rio de Onor (em cujas ruas não podem cruzar-se dois carros), a estrada é igualmente sinuosa, mas ainda mais estreita e com as bermas num estado lamentável.
Demoramos uma hora a percorrer 45 quilómetros.
Agora, sim, percebemos por que no dia anterior não conseguimos encontrar ninguém em Bragança que tenha vindo a Puebla de Sanabria apanhar o comboio de alta velocidade, Ave, para Madrid, apesar de a linha de alta velocidade já ter sido inaugurada em Julho passado e de se ter comentado que a capital nordestina era a cidade portuguesa mais próxima do comboio do futuro.
O problema é que, pelo meio, há uma estrada do passado.
“O tempo que se gasta para chegar de Bragança à estação de Sanabria é uma hora. Ora, nós demoramos três horas de carro directamente de Bragança para Madrid”, conta Hernâni Dias, presidente da Câmara de Bragança.
O preço dos combustíveis aconselha, porém, uma versão mais económica: ir de carro até Zamora e apanhar lá o Ave para Madrid. É também uma hora de carro, mas por uma estrada bem melhor e fica-se apenas a uma hora e meia da capital do país vizinho.
“Eu próprio já fiz isso. Fui a Zamora apanhar o TGV para Madrid e Barcelona. É uma maravilha! Um espectáculo!”, diz o autarca brigantino, que lamenta a ausência de respostas do Governo sobre uma nova estrada para ligar Bragança a Puebla de Sanabria, apesar das promessas e de o assunto até já ter sido discutido ao mais alto nível nas cimeiras ibéricas.
Hernâni Dias mostra-se compreensivo quanto à impossibilidade de se fazer uma auto-estrada entre as duas cidades vizinhas. Essa reivindicação caiu por terra devido ao impacto paisagístico e ambiental que provocaria no território que iria atravessar. Surgiu depois a hipótese de se fazer um IP (Itinerário Principal), mas o presidente da câmara também entende que dificilmente a APA (Agência Portuguesa do Ambiente) aceitaria que se esventrasse o Parque de Montesinho.
A solução passa por rectificar e ampliar a actual estrada e construir duas pequenas variantes nas localidades de Varge e Rio de Onor. No fundo, construir uma nova estrada em cima da actual.
São só 19 quilómetros de Bragança até à fronteira. Em 2018 um estudo, curiosamente feito pelo governo de Castela e Leão, apontava para uma estrada com 12 metros de largura (3,5 metros para cada faixa mais duas bermas pavimentadas de 2,5 metros cada). Custaria 34 milhões de euros.
O Governo português, porém, inscreveria no PRR uma estrada de sete metros (3,5 metros em cada faixa sem berma). Custo estimado: 16 milhões.
O presidente da Câmara de Bragança não disfarça o seu desalento e mostra-se até zangado. “Não concordo. Não é uma boa ligação”, diz. E aponta mais um problema: estudos do município dizem que esta estrada não custará menos de 25 milhões, motivo que o leva a recusar-se a assinar a contratação deste projecto, no âmbito do PRR. São nove milhões de diferença que podem cair em cima de um município cujo orçamento é de 40 milhões de euros.
“Quem assume o excedente desta obra?”, pergunta, acusando o Governo de estar muito empenhado em contratar projectos à pressa para poder dizer em Bruxelas que está a aplicar os fundos da “bazuca”.
“Querem é chutar tudo para as câmaras”, resume.
Como Hernâni Dias só assina o contrato desde que o Governo cubra a diferença, haverá agora que esperar por novos actores no futuro executivo para que a situação se desbloqueie.
E, enquanto não houver nova estrada, é assim, entre curva e contracurva, ziguezagueando pela montanha, que chegamos a Puebla de Sanabria (uma cidade histórica que merece uma visita) e, seis quilómetros mais à frente, ao local onde se pode apanhar o Ave.
O velho e o novo
A estação de alta velocidade de Puebla de Sanabria contrasta com o atarracado mas pitoresco edifício da estação da rede convencional que serve a localidade e que fica junto à estrada que vem de Portugal. O edifício parece um chalé suíço, construído com blocos de pedra, condenado ao abandono, pois nesta linha passam cada vez menos comboios.
Entre as duas estações — a velha e a nova — distam sete quilómetros. A de alta velocidade fica em Otero de Sanabria, um “pueblo” com 24 habitantes que, esse sim, passou a ficar realmente a duas horas de Madrid.
O moderno edifício fica no meio de nenhures e tem uma arquitectura simples e funcional. É amplo, tem um pé-direito alto e só possui uma sala de espera, máquina de venda de bilhetes e casa de banho. Um segurança, que verifica a passagem da bagagem pelo raio X, é a única presença humana nesta estação, onde só páram os comboios Alvia, uma espécie de regionais da alta velocidade, que circulam a 250 km/h. Os Ave, que atingem 300 km/h, passam por Sanabria sem parar.
Os que aqui páram são poucos: cinco para Madrid e quatro para vários destinos da Galiza, números que se reduzem para metade ao fim-de-semana. A viagem para Madrid custa entre 28 e 48 euros, mas, comprado com antecedência, o bilhete pode custa 14,40 euros.
O comboio que agora esperamos na plataforma n.º 4 da estação chama-se Alvia. Entra na estação, pontualmente, às 14h e um minuto e parte, à tabela, às 14h e três minutos. Só entram quatro passageiros para uma composição formada por 11 carruagens, invulgarmente baixas, com amplas janelas e um interior com tons de azul esverdeado. É confortável. Mesmo quando vai à velocidade máxima, a composição tem um andamento suave e nada ruidoso.
O “patito”
O nome técnico deste comboio é Talgo S-730, mas os espanhóis chamam-lhe “patito” devido à sua frente aerodinâmica em forma de bico de pato. Tem duas locomotivas (uma em cada extremidade), às quais estão ainda atrelados dois furgões geradores que trabalham a diesel e lhe fornecem energia eléctrica para poder circular em linhas não electrificadas. E mesmo nas electrificadas pode ainda circular com dois diferentes tipos de tensão (3000 volts em corrente contínua ou 25 mil volts em corrente alternada). Também incorpora dois sistemas de sinalização: o habitual ASFA dos comboios convencionais e o ERTMS das linhas de alta velocidade. A sua flexibilidade não acaba aqui: os seus rodados são adaptáveis à bitola ibérica e à bitola europeia (esta última é 23 centímetros mais curta). Um verdadeiro todo-o-terreno da ferrovia!
Meia hora depois estamos em Zamora, onde o “patito” pára durante cinco minutos. Esta é uma das poucas estações que ficam realmente no centro da cidade e onde há uma intermodalidade perfeita entre a alta velocidade e os comboios convencionais. Nas restantes, os decisores optaram por segregar mercados e construir as estações longe das localidades. Acontece um pouco por toda a Espanha: em Segóvia, Burgos, Antequera, Cuenca, Requena-Utiel, Guadalajara, Tarragona.
A paisagem começa a mudar. A orografia de montanha, com muita vegetação, deu lugar às extensas planícies de Castela. Uma coisa permanece: os cursos de água, rios, lagos, barragens, que passam velozmente através da janela, estão quase secos. A seca é um problema ibérico, não exclusivamente português.
Às 15h e dois minutos o Alvia volta a parar, desta vez em Medina del Campo, cuja estação de alta velocidade fica também longe da povoação. Até Madrid, este comboio, que é uma espécie de regional da alta velocidade, voltará ainda a parar em Segóvia-Guiomar, também longe do centro da cidade.
Mas por agora é altura de ir ao bar, um espaço amplo, com um balcão ondulado, onde duas simpáticas funcionárias servem bebidas e “refeições expresso” (seja lá isso o que for). Uma sandes, batatas fritas, cerveja e café custam 8,60 euros. Tudo muito plastificado. Come-se de pé, encostado ao balcão. Degustar uma boa refeição sentado à mesa de uma carruagem-restaurante vendo a paisagem desfilar através da janela é um prazer que as companhias ferroviárias se têm esforçado por retirar ao viajante. A Renfe é uma delas.
A serra de Guadarrama avista-se, imponente, cada vez mais perto. Uma massa enorme que nesta altura do ano devia estar coberta de neve, mas que apresenta um ar inóspito e despido. Não que não faça frio. Não tem é havido precipitação. A seca persegue-nos.
Para chegar a Madrid é necessário atravessar o túnel que tem o nome da serra. É uma obra de engenharia complexa, inaugurada em 2007, que mede 28 quilómetros e por onde o Alvia mantém a sua velocidade máxima de 250km/h.
Pouco depois do túnel já se avista Madrid ao fundo. A paisagem da Espanha esvaziada, que nos acompanhou em praticamente todo o percurso, é agora feita de auto-estradas, bairros periféricos, linhas suburbanas e o edificado crescente dos arredores da grande cidade.
E, de repente, já chegámos. Às 16h e três minutos o Alvia n.º 04114 dá entrada na estação de Chamartín. Demorou — com precisão ferroviária — duas horas e três minutos a percorrer 334 quilómetros entre Puebla de Sanabria e Madrid. Mais uma hora desde Bragança.