O maquinista que ganhou um dia de trabalho para fazer 500 metros
20/11/2021 06:08 - Público

Exigência de certificados de segurança põe em causa o que resta do serviço ferroviário internacional. Maquinistas têm de conhecer a regulamentação técnica e dominar o idioma do país vizinho, mesmo que seja para uma curta viagem entre estações fronteiriças.

O maquinista que ganhou um dia de trabalho para fazer 500 metros

Vilar Formoso, 3 de Setembro de 2021. O maquinista Silva (nome fictício) acordou nessa manhã no dormitório da CP e apanhou um táxi, pago pela empresa, para Fuentes de Oñoro. Aí chegado, subiu a uma locomotiva espanhola, cumprimentou o colega e juntos iniciaram a viagem de 1200 metros que separam as duas estações fronteiriças.

Do lado de cá, a locomotiva espanhola foi atrelada a uma composição que a aguardava na estação e fez o percurso inverso para Fuentes de Oñoro. Aos comandos esteve sempre o maquinista espanhol. O português limitou-se a servir de acompanhante, com responsabilidade de supervisão apenas no território português, ou seja, durante os 267 metros que medeiam entre a estação de Vilar Formoso e o ponto quilómetro que assinala a fronteira entre Portugal e Espanha.

Ao chegar a Fuentes de Oñoro, o maquinista Silva apanhou um táxi de regresso a Vilar Formoso e deu por concluído o seu dia de trabalho. Não conduziu nenhum comboio. Limitou-se a coadjuvar o colega espanhol durante um percurso de 534 metros.

Este episódio ocorreu aquando da passagem do Connecting Europe Express em Vilar Formoso e só não se repete diariamente porque ali já não passam comboios de passageiros. Regulamentação recente, que resulta de um acordo entre as autoridades de segurança ferroviária dos dois países, obriga a que os maquinistas tenham um certificado de segurança para poder circular entre estações fronteiriças, seja qual for a distância entre estas.

“Só por 1200 metros? Mas isso é absolutamente ridículo!” Esta foi a exclamação de uma funcionária da DG Move (Direcção-geral para a Mobilidade e Transporte), da Comissão Europeia, que seguia a bordo daquele comboio quando confrontada com este procedimento. Mas os desabafos dos responsáveis europeus nada podem quanto a uma regulamentação que a CP vai ser obrigada a aplicar e que pode pôr em causa o que resta do serviço internacional, nomeadamente a ligação diária entre o Entroncamento e Badajoz.

Neste caso, o mesmo maquinista que leva a automotora até Elvas prossegue mais 10,7 quilómetros em território português até entrar em Espanha percorrendo depois mais 4,7 quilómetros até entrar na estação de Badajoz. Por causa deste último troço, a CP vai ter que, a partir de Janeiro, dotar os seus maquinistas com um certificado de segurança, que implica, entre outras coisas, o domínio B1 do espanhol. Em alternativa, terá de vir um colega espanhol fazer o acompanhamento ao maquinista português entre as duas estações.

Ambas as soluções implicam um acréscimo de custos, pelo que, tratando-se de um serviço regional com pouca procura e fracas receitas, a CP pondera simplesmente acabar com esse serviço, limitando o serviço de passageiros na linha do Leste apenas ao percurso Entroncamento - Elvas.

Actualmente só há duas relações internacionais entre Portugal e Espanha: Porto – Vigo e Entroncamento – Badajoz, ambas realizadas ao abrigo de um “acordo de partenariado” entre a CP e a Renfe.

Acontece, porém, que as directivas comunitárias têm vindo a aumentar as exigências de segurança para que os maquinistas possam conduzir fora do seu país, pelo que a AESF (Agencia Estatal de Seguridad Ferroviaria) e o IMT passaram a exigir um certificado de segurança tornado agora obrigatório por Bruxelas sempre que um comboio internacional cruza uma fronteira com o mesmo maquinista.

Já a ligação Porto – Vigo não está em risco porque os maquinistas que conduzem o Celta possuem certificado de segurança. Uns e outros estão habilitados a desempenhar a sua função nos dois países porque tiveram formação para dominar ambas as línguas e conhecer o trajecto e a regulamentação técnica em vigor nos dois lados da fronteira.

Neste caso, a condução é feita de ponta a ponta: os maquinistas da CP podem ir até Vigo e os seus homólogos da Renfe podem trazer os comboios até Campanhã.

Em Vilar Formoso deixou de circular o comboio internacional que ligava Lisboa a Madrid e Hendaya. Mas, se e quando este serviço for retomado, os maquinistas portugueses terão de ser formados para poderem conduzir nos mil metros do lado espanhol ou então portugueses e espanhóis terão de ser acompanhados na cabine de condução.

Curiosamente, a competência linguística que é exigida ao pessoal de condução para operar entre as fronteiras não tem paralelo no pessoal das estações fronteiriças responsáveis pela gestão do tráfego ferroviário. Os agentes da IP (Infraestruturas de Portugal) e do Adif (Administrador de Infraestructuras Ferroviárias) entendem-se em “portunhol” nos telefonemas regulamentares para o pedido e concessão de avanços aos comboios.

Antes de Portugal e Espanha entrarem na CEE, as relações ferroviárias internacionais funcionavam ao abrigo de regulamentos transfronteiriços bem mais flexíveis, alguns dos quais ainda estão em vigor (como é o caso, até Dezembro, da relação entre Elvas e Badajoz). Mas isso está a desaparecer em virtude da regulamentação comunitária que traz novas exigências.

Em 1986, havia 20 comboios diários (dez em cada sentido) a ligar os dois países: dois entre Lisboa e França, dois entre Lisboa e Madrid, três entre o Porto e Vigo e três entre Lisboa, Entroncamento e Badajoz. Hoje só há três comboios em cada sentido a cruzar fronteira.