200 anos de caminhos de ferro
27/02/2025 11:16 - Transportes & Negócios
Ao celebrarmos o bicentenário da ferrovia, há que refletir sobre estes dois séculos de conquistas inovadoras, bem como aprender com os erros cometidos. The post 200 anos de caminhos de ferro first appeared on Transportes & Negócios.

Desde a primeira viagem da Stockton and Darlington Railway (S&DR), em setembro de 1825, a ferrovia cresceu e tornou-se numa rede global, símbolo da inovação tecnológica e elemento-chave no crescimento industrial e social. A viagem inaugural nos pouco mais de 40 km da S&DR demorou menos de três horas e representou muito mais do que um mero momento histórico: marcou o nascimento do transporte ferroviário moderno de passageiros e o início de uma nova era. Cinco anos depois inaugurava-se a célebre linha Manchester-Liverpool, onde foi usada a mais famosa das locomotivas a vapor – a Rocket, construída por George Stephenson.
Este feito mudou por completo o modo como passaram a ser transportadas mercadorias e pessoas, abrindo caminho para o domínio industrial britânico e de todos os países que, posteriormente e progressivamente, apostaram no comboio. O tiro de partida estava dado e assistiu-se a uma explosão na construção de infraestruturas ferroviárias, com novas linhas a ligar cidades, portos e as mais diversas economias, tornando-se vital para o comércio e nas grandes relações socioeconómicas globais.
O mundo assistiu a um período de grandes feitos, recordes, reformas e mudanças no setor ferroviário, que perduram no tempo e são demonstrativas da capacidade de contínua superação, transformação e modernização. E são inúmeros os exemplos. Assistiu-se ao surgimento dos grandes expressos ferroviários europeus e de várias ligações internacionais diurnas e noturnas, bem como à criação do Turismo como indústria. Os serviços ferroviários evoluíram não só com mais e melhores infraestruturas, mas também com a evolução dos níveis de conforto, rapidez e segurança dos comboios produzidos por uma indústria ferroviária em constante evolução. O setor tornou-se um farol de evolução tecnológica e catalisador de mudanças sociais.
Na década de 50 e 60 do século XX, a tração diesel já era dominante em vários países, a eletrificação uma realidade e, em 1964, o Japão tornava-se pioneiro na Alta Velocidade com abertura à exploração do Shinkansen, entre Tóquio e Osaka. 17 anos depois inaugurava-se, em França, a primeira linha de TGV (Train à Grande Vitesse), entre Paris e Lyon. Gradualmente e progressivamente potenciava-se a difusão desta tecnologia por vários pontos do globo. Estes países, a par de outros como a Espanha, Alemanha, Itália ou China, tornaram-se grandes referências neste segmento destacando-se este último que, desde 2020, é o país com a mais extensa rede de Alta Velocidade do mundo.
Em 1994 inaugurava-se o Eurotúnel, permitindo ligar o Reino Unido à Europa e, mais recentemente, em 2016, os 57 km do Túnel de Base de São Gotardo – o maior túnel ferroviário do mundo, que rompeu o maciço rochoso dos Alpes com o intuito de aproximar o Sul e o Norte da Europa. As alterações climáticas, as metas de neutralidade carbónica até 2050, a digitalização e a própria sustentabilidade do setor têm potenciado ainda mais a evolução tecnológica também através da proliferação de alternativas de tração ao diesel, além da eletrificação, tendo surgido nos últimos anos comboios movidos a baterias e hidrogénio. Destaca-se a apresentação mundial, em 2016, do primeiro comboio de passageiros do mundo movido a hidrogénio: a unidade regional Coradia iLint, da multinacional Alstom.
Pelo seu impacto como elemento diferenciador da História e do Mundo, em 1998, a UNESCO reconhece a importância da ferrovia ao declarar os 41 km da austríaca Linha de Semmering como Património da Humanidade – a primeira via férrea do mundo a receber esta classificação pela notável obra de engenharia que representa e que funciona de forma ininterrupta desde 1854.
Mas a história dos caminhos de ferro viveu igualmente períodos conturbados e de declínio, motivado não só por políticas públicas questionáveis, desinvestimento e consequente forte aposta em outros modos de transporte, mas também pela implementação de reformas que poderiam ter comprometido significativamente a própria existência da ferrovia. Em todas as partes do mundo, os países atuaram tendo em conta a existência de ferrovia, ou favorecendo-a como instrumento de políticas públicas ou desfavorecendo-a em benefício de outros valores.
Nesta matéria, e sem surpresa, o Reino Unido mostrou ser um bom exemplo, quase que representando uma escola e doutrina, que se propagou por outros países. A chegada de Richard Beeching à administração da British Railways, nos anos 60 do século XX, trouxe o famoso “Beeching Report”, documento que visava o encerramento de 8000 km de linhas e de 2363 estações que faziam parte, sobretudo, da rede regional e rural britânica. Se por um lado o objetivo era melhorar a contabilidade da empresa pública britânica, à custa da redução da rede e dos serviços ferroviários, por outro trouxe um período de contestação motivado pelas intenções e objetivos de acabar com o serviço ferroviário em várias localidades e regiões. Boa parte do plano foi consumado, realidade que afetou profundamente o desenvolvimento dos territórios, e os documentos que sucederam o “Beeching Report” até aos anos 80 mantiveram o mesmo denominador comum. Entretanto, e por pressão institucional e social algumas linhas e troços reabriram, dos quais se destaca a linha regional escocesa transfronteiriça Waverley Line que, ao fim de 47 anos de encerramento e abandono, viu os seus comboios regionais regressar, em 2015, e, atualmente, está em fase de discussão e estudo a sua reabertura até Inglaterra. A reconstrução da Waverley Line, igualmente conhecida como Borders Railway e uma das vítimas do “Beeching Report” é, até aos dias de hoje, uma das principais obras ferroviárias dos últimos 100 anos no Reino Unido.
Após quase seis décadas, e para recuperar perdas provocadas por uma época de encerramentos, em 2020, o governo britânico apresentou o Restoring Your Railway Fund, programa avaliado em cerca de 600 milhões de euros e que foi lançado para financiar projetos de reaberturas de linhas e troços. Ainda no Reino Unido, nos anos 90 assistiu-se ao fim da British Railways e à privatização dos serviços ferroviários. No entanto, três décadas depois voltam para a esfera da gestão pública através da recém-criada Great British Railways (GBR), entidade que ficará responsável pela gestão da infraestrutura ferroviária e dos serviços ferroviários.
Ao celebrarmos o bicentenário da ferrovia, há que refletir sobre estes dois séculos de conquistas inovadoras que transformaram a mobilidade e a forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos, bem como aprender com os erros cometidos que condicionaram o progresso ferroviário e comprometeram o presente e futuro das regiões outrora servidas pelo comboio. Desde o seu modesto início, em 1825, até ao seu papel fundamental no panorama atual dos transportes, em particular no cumprimento dos objetivos de descarbonização do setor e das economias, a ferrovia tem sido uma força motriz para o progresso, inovação e coesão territorial, capaz de se adaptar à evolução dos tempos e à forte concorrência dos meios de transporte rodoviário e aéreo.
Hoje, a indústria ferroviária global consolida-se e impulsiona-se como um importante ativo económico ao apresentar um valor de mercado na ordem dos 201,8 mil milhões de euros impulsionado, sobretudo, pelos investimentos efetuados pela Europa Ocidental e cuja tendência é de crescimento (Unife, 2024). Na Europa, o impacto do setor ferroviário ao nível socioeconómico é significativo, representado por uma dimensão económica na ordem dos 182 mil milhões de euros e pelo contributo na criação de emprego: um milhão de postos de trabalho diretos e 1,3 milhões indiretos (CER, 2025).
O surgimento do transporte ferroviário contribuiu para tornar o Mundo mais pequeno, através de uma inovação técnica sem paralelo na História, e que nos dias de hoje continua a destruir o tempo e a encurtar distâncias. O modelo civilizacional tal como o conhecemos nasceu com a Revolução Industrial e dos Transportes. Na História ficará registado o grande feito e inovação que são os caminhos de ferro e a sua proliferação à escala global.
ANDRÉ PIRES
Professor