Teletrabalho provoca quebra na venda de passes em Lisboa e Porto
06/11/2021 20:45 - Expresso

Passes vendidos na capital estão 25% abaixo do nível pré-covid. Governo lança campanha

Teletrabalho provoca quebra na venda de passes em Lisboa e Porto

O número de passageiros nos transportes públicos está a aumentar lentamente e já há autocarros e comboios cheios à hora de ponta. Mas a venda de passes na área metropolitana de Lisboa, em outubro, ficou 25% abaixo do mesmo mês antes da pandemia e no Porto a quebra rondou os 34% em setembro.

Muitos reformados e idosos ainda não voltaram a comprar passe, mas é nos novos modelos de teletrabalho que os operadores e especialistas em mobilidade encontram a grande explicação para a menor procura. A realidade repete-se noutras cidades europeias e, face à quebra, o Governo vai lançar uma campanha para incentivar o regresso aos transportes coletivos.

No caso de Lisboa, há menos pessoas a fazerem diariamente a travessia do rio Tejo comparando com setembro de 2019. Os barcos da Transtejo Soflusa têm metade dos passageiros, os comboios da Fertagus contam 20% menos e os autocarros da Transportes Sul do Tejo (TST) sentem uma quebra de 35%. Todos apontam para o teletrabalho. “A lenta recuperação parece ser justificada pelas novas dinâmicas e rotinas laborais, ou seja, teletrabalho, regime de trabalho híbrido e flexibilidade de horário, além das flutuações da taxa de desemprego e uma maior utilização do transporte individual”, indica a Transtejo ao Expresso. “Apesar da retoma gradual, a procura por turistas, importante em ligações como Cacilhas-Cais do Sodré, continua aquém de 2019.”

Os utentes dos transportes da Margem Sul já sentem os comboios cheios no início da manhã e ao fim da tarde, mas a Fertagus indica que a quebra ainda é maior nas horas de ponta. Outro sinal de que há menos pessoas a usarem os transportes na travessia do Tejo é a ocupação dos parques de estacionamento junto das estações de comboio ser cerca de metade do que antes. “Parece-nos bastante evidente que o dia a dia das pessoas em 2021 não é idêntico a 2019. O teletrabalho ainda se mantém em muitas empresas e em algumas áreas de atividade poderá vir mesmo a permanecer. Adicionalmente, consolidaram-se hábitos de utilização do automóvel que não se contrariam de um dia para o outro”, resume a Transportes Metropolitanos de Lisboa (TML).

A TIP, empresa que gere os transportes no Grande Porto, aponta as mesmas razões para a quebra de 34% na venda de passes, lembrando que o trânsito está acima do período pré-pandemia. Com menos 22% de passageiros nos autocarros nas três primeiras semanas de outubro, a STCP explica que “quando as pessoas mudam a forma como se deslocam a recuperação é lenta”. Para “relançar a procura de transporte coletivo”, o Governo está a trabalhar em campanhas motivacionais, segundo o Ministério do Ambiente ao Expresso. Também a TML está a estudar os comportamentos de retoma para definir medidas.

Sexta é o pior dia, diz PSE

Ainda não existem estudos sobre o que mudou na mobilidade de quem não voltou a comprar passe. Há quem opte pelo carro porque se desloca menos vezes para o trabalho e quem continue a usar os transportes, com menos frequência, preferindo não comprar passe. Segundo a consultora de ciências de dados PSE, 17,8% das pessoas estão em teletrabalho na Grande Lisboa e 17,6% no Porto.

“A população em teletrabalho sai de casa durante o dia e será este fator que contribui, de alguma forma, para os atuais níveis de trânsito e de mobilidade”, indica, acrescentando que essas deslocações não se concentram só nas horas de ponta, mas se estendem durante todo o dia. “Sexta-feira é o dia com maior mobilidade, 25,4% acima da média antes da pandemia.”

Dos 200 mil passes a menos comprados na Grande Lisboa no mês de setembro, a maioria (60%) são Navegante Metropolitano, que permitem circular em todos os concelhos. Ainda que em menor número, nota-se a queda dos passes gratuitos de crianças abaixo dos 12 anos para menos de metade, o que pode significar que há mais pais a levarem os filhos à escola por outros meios, incluindo o carro. “É plausível que a quebra no uso dos transportes coletivos esteja a gerar mais trânsito na cidade. Mas pode ser temporário devido a esta fase de adaptação e reorganização de hábitos”, defende Rosário Macário, professora do Instituto Superior Técnico (IST) e especialista em transportes.

O Metro de Lisboa teve pouco mais de metade (57%) da procura habitual em setembro e a Carris está com menos 20% concentrados sobretudo fora da hora de ponta. “Há maior representatividade da procura das primeiras horas do dia até às 8h da manhã”, aponta a empresa municipal. Em falta estão os passageiros ocasionais e os mais velhos. Segundo os dados dos transportes de Lisboa, venderam-se menos 31 mil passes a pessoas acima de 65 anos (-30%). “Há ainda algum receio, que me parece recuperável à medida que se mantém estabilidade dos números da covid e que as pessoas ganham nova confiança”, aponta Rosário Macário.

Com os novos modelos de trabalho híbrido, discute-se se ajudaria ter títulos de transporte semanais ou quinzenais, adaptados a quem não tem de ir para o trabalho todos os dias. Rosário Macário não acha que esse seja um entrave à retoma dos transportes coletivos e Carlos Humberto Carvalho, à frente da AML, admite que a questão está em discussão, embora o passe continue a ser prioridade [ver entrevista].

Para a professora do IST, os transportes coletivos têm de olhar para a mobilidade de forma mais integrada. “Têm de mudar a lógica de negócio, olhando para os outros modos não como rivais mas como parceiros que oferecem a modalidade de transporte complementar. Serão o grande ganhador se os outros transportes lhes trouxerem mais pessoas.” O futuro da mobilidade urbana passa pela integração de todos os transportes — autocarro ou comboio, táxi, trotineta ou bicicleta partilhada — numa mesma plataforma digital de fácil e rápido acesso.

Na Web Summit, esta semana, esse foi um dos grandes temas em discussão como forma de convencer as pessoas a usar menos o carro e assim reduzir o número de automóveis a circular nas cidades.

Quatro Perguntas a:

Carlos Humberto Carvalho Primeiro-secretário da Área Metropolitana de Lisboa (AML)

P Ponderam criar um passe adaptado a quem está em trabalho híbrido e já não usa os transportes todos os dias? R É uma reflexão que se está a fazer, mas não me parece que se conclua a curto prazo. Com a criação do Navegante, uniformizámos os títulos de transporte, facilitá-mos a sua utilização e, para já, a prioridade é o passe. É preciso ainda melhorar a aquisição do passe Navegante Família e dos bilhetes para viagens individuais, que não têm uma solução integrada e obrigam as pessoas a comprar para um transporte e depois para outro. Mas é um processo complexo do ponto de vista tecnológico. Estamos a trabalhar para termos em julho de 2022 um sistema com informação em tempo real, para informar as pessoas sobre quantos minutos faltam para o autocarro passar, dizer que o comboio está a chegar à estação, que houve um acidente ou que não há metro. E servirá também para fiscalizar o serviço prestado aos clientes. Com a Carris Metropolitana, este sistema está pronto de certeza para os transportes rodoviários, mas queremos essa integração em toda ou quase toda a mobilidade coletiva na AML.

P Como se incentiva o regresso aos transportes públicos? R É preciso criar um ambiente de segurança e confiança envolvendo o Governo e as autoridades de transportes. É indispensável aumentar a oferta, e no sector rodoviário prevemos um reforço de 40% a partir de julho de 2022, com o arranque da Carris Metropolitana. É preciso também ter custos mais acessíveis, mais qualidade e maior conforto. E apostar no sistema tecnológico para integrar outros serviços de mobilidade nos passes. Defendo também que se invista nas gerações mais novas e se aposte na gratuitidade dos passes até aos 18 anos na AML.

P Concorda então com Carlos Moedas, autarca da capital, que quer dar transportes gratuitos a jovens e idosos? R Sou defensor de passes gratuitos e, portanto, acho que essa é uma medida positiva, mas não pode ser isolada, só para o concelho de Lisboa. A Câmara Municipal vai ter um problema se concretizar essa medida isoladamente. É que para garantir a gratuitidade aos residentes do município só o pode fazer na Carris, que é gerida pela Câmara. E o que está acordado é que se houver consequências para o sistema de transportes da AML, ou seja, se a gratuitidade na Carris tirar utentes a outros transportes, como metro ou comboio, esses operadores terão de ser compensados. A Câmara não pode dizer às pessoas para andarem no transporte que quiserem gratuitamente, porque isso pressupõe que irá pagar aos operadores. A não ser que compre os passes e os disponibilize à população.

P Já é possível comprar e validar bilhete com telemóvel nos transportes no Porto e na Fertagus, em Lisboa. Quando será possível nos restantes? R Está a ser estudada uma melhoria do sistema tarifário. É uma mudança radical, complexa, que exige grandes investimentos do ponto de vista tecnológico, e estamos a fazer esse caminho.