Como Espanha tem deixado Portugal à beira de ser uma ilha ferroviária
28/10/2021 06:23 - Público
As cimeiras ibéricas sucedem-se repetindo os mesmos temas na ferrovia, mas a realidade mostra que os espanhóis ignoram o vizinho do lado em matéria ferroviária. O PÚBLICO apresenta cinco exemplos.
Interoperabilidade ferroviária, eixo Sines-Badajoz, linha Aveiro-Salamanca, ligação Porto-Vigo fazem parte da agenda da cimeira ibérica que esta quinta-feira se realiza em Trujillo (Cáceres). Os temas repetem-se de cimeira para cimeira, sem que, no terreno, haja grandes desenvolvimentos em matéria ferroviária entre os dois países.
1. A electrificação de Salamanca a Vilar-Formoso Em 8 de Julho de 1997 Portugal inaugurava a tracção eléctrica da linha da Beira Alta até Vilar Formoso. Do lado de lá da fronteira, porém, os comboios continuavam (e continuam) a circular a diesel. Na cimeira ibérica da Figueira da Foz de 2003, entre Durão Barroso e José Maria Aznar, é acordado que Espanha dará continuidade à electrificação entre a fronteira portuguesa e Salamanca. O projecto é redigido no ano seguinte, mas só 13 anos depois é que nuestros hermanos se decidiram lançar o concurso público para avançar com as obras.
O investimento, de 95 milhões de euros, previa que os comboios eléctricos chegassem a Vilar Formoso em Dezembro de 2020. Mas o Adif (Administrador de Infraestructuras Ferroviarias) anunciou que os trabalhos se atrasaram e apontou uma nova data para a Primavera de 2021. Falhou. O novo objectivo é agora 2025. O país que em duas décadas construiu a segunda maior rede de linhas de alta velocidade do mundo não consegue electrificar atempadamente cem quilómetros de via única até à fronteira portuguesa.
Até há poucos meses, quando se electrificou o troço fronteiriço entre Tuy e Valença, Portugal e Espanha eram os únicos países da Europa que não tinham nenhuma das suas fronteiras electrificadas.
2. Fim da ligação Lisboa-Madrid A suspensão do comboio-hotel Lusitânia Expresso entre Lisboa e Madrid, em Março de 2020, devido à pandemia, ditou também o seu fim. Poucos meses depois da suspensão, a Renfe anunciava que não pretendia retomar aquele serviço alegando que era deficitário. Um acto de gestão em linha com a sua política interna de acabar com todos os comboios nocturnos pois desapareceram também os comboios-hotel entre Madrid e Ferrol e entre Barcelona e Vigo.
A Renfe era sócia da CP na exploração do Lusitânia, mas rasgou o acordo unilateralmente, sem negociações e contra a vontade da sua congénere portuguesa, que já várias vezes manifestou a sua vontade de retomar este serviço.
Em consequência, o centenário Sud Expresso, que ligava Lisboa a Hendaya (com ligação ao TGV para Paris) também acabou. O Sud servia também as cidades de Salamanca, Valladolid, Vitória, Burgos e San Sebastián, que tinham assim uma ligação directa a Portugal. O comboio era explorado só pela CP, mas circulava atrelado ao Lusitânia entre Lisboa e Medina del Campo, com evidentes economias de escala.
Apesar dos esforços da CP e do próprio ministro das Infraestruturas e Habitação, Pedro Nuno Santos, junto do seu homólogo espanhol, a Renfe mantém-se inflexível em recusar a retoma do serviço entre as duas capitais ibéricas, fazendo de Lisboa uma das três capitais europeias que não tem comboios internacionais.
Em contrapartida, na Europa tem-se assistido ao recrudescimento dos comboios nocturnos, apoiados por grande parte da população, que vê nestas ligações uma alternativa aos voos de média distância com óbvias vantagens ambientais.
3. O poluente e ruidoso serviço Porto-Vigo A linha do Minho foi electrificada em 25 de Abril deste ano e desde esse dia todos os comboios da CP entre Valença e o Porto passaram a ser eléctricos. Poucos meses depois, o troço que faltava electrificar do lado espanhol, entre Guillarey e Tui, era também dado por concluído.
O Minho e a Galiza têm, assim, uma infra-estrutura electrificada, mas o serviço Porto – Vigo continua a ser feito por velhas automotoras a diesel desconfortáveis, ruidosas e poluidoras (gastam 1,94 litros por km).
Dá-se assim o paradoxo de o serviço internacional ser pior que o regional de ambos os lados da fronteira. Portugal não tem material eléctrico para ir a Espanha, mas a Renfe possui as S-120, automotoras eléctricas bi-tensão que podem circular nos 3000 volts da catenária espanhola e nos 25 mil volts da catenária portuguesa.
Em circunstâncias normais – e até para dar sequência ao discurso político da descarbonização e das boas relações entre o Minho e a Galiza – a CP e a Renfe já se teriam posto de acordo em explorar o eixo Porto-Vigo com material eléctrico. Mas o PÚBLICO apurou que o assunto nem sequer está em cima da mesa entre as duas empresas.
O desinteresse da Renfe nas relações com Portugal contrasta com os projectos no estrangeiro de uma empresa que se está a tornar transnacional. A Renfe explora na Arábia Saudita a linha de alta velocidade entre Meca e Medina e detém metade do capital da empresa checa Leo Express que também pode operar comboios na Eslováquia, Polónia e Alemanha. Mais: a empresa estatal espanhola também está interessada em explorar o Tren Maya no México, a linha Dallas – Houston nos Estados Unidos e tem procurado vencer, com pouco êxito, o proteccionismo francês para operar com comboios de alta velocidade até Paris. Na terça-feira o El País anunciava que a empresa vai pedir canais horários para competir com franceses e ingleses na linha Paris – Londres através do Eurotúnel.
4. Linha do Douro até Salamanca Em 11 de Março de 2021, a Assembleia da República aprovava por unanimidade a reabertura da linha do Douro entre Pocinho e Barca de Alva, dando seguimento a uma petição popular com 13.999 assinaturas que reivindicava a reactivação daquela infra-estrutura encerrada há 34 anos.
Sem jurisdição no país vizinho os deputados portugueses só se pronunciaram sobre a reabertura até à fronteira. Mas o sentir das populações e autarcas da região Norte é que a linha deve ser reaberta até Salamanca, ligando quatro destinos que são Património da Humanidade: o Porto, o Douro Vinhateiro, as gravuras de Foz Côa e a cidade de Salamanca.
Já em 2018 a Comissão Europeia tinha escolhido, entre 365 ligações ferroviárias, a fronteira de Barca de Alva/La Fregeneda como um dos 48 missing links (ligações em falta) capazes de gerar mais valias para a economia e o território e para a qual haveria financiamento comunitário.
Sendo certo que do lado português o processo tem avançado muito lentamente (ainda só houve uma reunião de um grupo de trabalho nomeado para estudar a reabertura), também é verdade que Espanha não se mostrou interessada nesta abertura, que colocaria o Porto e Leixões mais próximos de Castela e Leão.
Já na cimeira ibérica de 2017, entre António Costa e Mariano Rajoy, o assunto foi falado ao nível de grupos de trabalho e de secretários de Estado, mas acabaria por cair na agenda dos dois chefes do governo.
5. A alta velocidade Madrid-Badajoz Um cartoon espanhol recente apresentava quadrículas onde se viam comboios de alta velocidade rumo ao Sul, ao Norte e a Este de Espanha, mas na quarta quadrícula aparecia uma diligência puxada por cavalos em direcção “ao longínquo Oeste”, à Extremadura. Cáceres, Mérida e Badajoz continuam afastadas da rede de alta velocidade.
A chegada destes comboios rápidos à fronteira lusa foi prometida por Aznar e Zapatero para 2010. O governo Rajoy assegurou que seria em 2015 e o de Pedro Sánchez em 2019. Nenhum acertou. As obras dessa linha decorreram sempre a uma velocidade inversa à do comboio que nela há-de circular.
É certo que neste caso a República Portuguesa, ao quebrar o compromisso assinado com o país vizinho de que construiria uma linha de alta velocidade entre Lisboa e Badajoz, retirou urgência ao projecto espanhol. O troço Poceirão – Caia chegou a estar adjudicado pelo governo Sócrates, mas com a crise financeira as obras nem chegaram a arrancar.
Agora já há obras para uma nova linha entre Évora e Elvas, integrada no corredor de mercadorias Sines-Badajoz, mas com parâmetros que permitem velocidades de 250 km/h.
A perspectiva de Madrid é que não vale a pena acelerar o AVE (Alta Velocidad Española) para uma região periférica com fraca procura sem que haja continuidade para Lisboa e daí a pouca prioridade atribuída à linha para Badajoz.