TGV: Um novo caminho ferroviário mas com riscos associados
14/03/2024 07:05 - Sapo Eco
Cerca de 1h20 é o tempo aproximado da deslocação de comboio entre Lisboa e Porto com o novo TGV e que já esteve mais longe de ser realidade. Isto porque já foi dado o “pontapé de saída” para o primeiro concurso público internacional para a primeira PPP, que prevê uma concessão de 30 anos – […]
Cerca de 1h20 é o tempo aproximado da deslocação de comboio entre Lisboa e Porto com o novo TGV e que já esteve mais longe de ser realidade. Isto porque já foi dado o “pontapé de saída” para o primeiro concurso público internacional para a primeira PPP, que prevê uma concessão de 30 anos – cinco para a construção e 25 anos para a gestão da linha.
A primeira fase do projeto da linha de alta velocidade, que é composta por dois troços – Campanhã (Porto) a Oiã (Aveiro) e Oiã a Soure -, já está em andamento, tendo sido lançado o primeiro concurso, para o troço Porto – Aveiro, em janeiro. Mas, uma vez que são dois troços, vai implicar dois concursos, dois contratos e duas declarações de impacte ambiental.
Caso o primeiro concurso não tivesse sido lançado até ao final de janeiro, o Estado arriscava perder entre 700 mil e 750 mil euros de Fundos Europeus.
O segundo concurso para o troço Oiã – Soure já está a ser preparado, estando previsto o lançamento no final do primeiro semestre e início do segundo. Já a segunda fase, até ao Carregado, está agendada para 2032 e a última não tem calendário fixo.
Mas o que representa só esta primeira fase? Segundo Frederico Francisco, ex-secretário de Estado do Governo de António Costa, permite reduzir o tempo de viagem entre Porto e Lisboa das cerca de 3 horas para 2 horas. Ao todo, a obra do TGV vai ser realizada em três fases. A segunda fase ligará Soure ao Carregado e a última fase o Carregado à Estação do Oriente, em Lisboa.
“A construção da linha de alta velocidade entre o Porto e Lisboa é, sem dúvida, um projeto estratégico e estruturante para o país. Será certamente um dos maiores, se não mesmo o maior, das últimas décadas em termos de volume de investimento público, e trará benefícios significativos para Portugal, proporcionando mais e melhores serviços ferroviários, contribuindo para a descarbonização do setor dos transportes e fomentando uma maior coesão territorial”, referiu Stéphanie Sá Silva, sócia da DLA Piper ABBC.
Considerado um dos maiores investimentos em Portugal no século XXI, há riscos e desafios associados que colocam o país à prova. Desde o risco de financiamento ao contratual, vários são os aspetos apontados pelos advogados.
José Luís Moreira da Silva, sócio da SRS Legal, explicou à Advocatus que o financiamento é um dos principais riscos deste projeto que devem ser “bem” considerados e pensados pelos concorrentes.
“Recai sobre os concorrentes o risco quase total de financiamento da construção e manutenção da linha nova a construir, existindo umas linhas de apoio do Governo e de Fundos Europeus, mas relativamente reduzidas face ao total necessário. Assim, cabe aos concorrentes obterem financiamento junto do BEI e da Banca comercial da maior parte dos fundos necessários. Estaremos a falar de, entre equity e empréstimos bancários, em torno de 700 a 800 milhões de euros. Ou seja, não é para qualquer concorrente”, disse.
Face a este risco, o advogado assegura que se estão a formar grandes consórcios de forma a terem a capacidade e “músculo” financeiro adequado. “Sendo uma concessão em regime de PPP, o risco recai quase totalmente no concessionário, pelo que tem de ter capacidade para o efeito”, acrescentou.
Para Duarte Rodrigues Silva e João Amaral e Almeida, sócios da Sérvulo, um dos principais desafios é que o contrato seja, efetivamente, celebrado e inicie a respetiva produção de efeitos, seja em razão do risco da fiscalização prévia do Tribunal de Contas, seja em razão da litigância que se pode gerar em torno de fatores de avaliação cuja aplicação não é evidente desde o início. Assim, consideram ser essencial a “clareza” das disposições aplicáveis ao procedimento e ao contrato a celebrar, a “transparência do critério de adjudicação” e a “segurança nas exigências e nos condicionamentos técnicos estabelecidos”.
“O aspeto nevrálgico de qualquer contrato público, em especial de dimensão estratégica, é o da escolha daquilo que se deva considerar ser a melhor proposta. A escolha da proposta economicamente mais vantajosa – que é hoje a designação do único critério de adjudicação previsto na legislação da contratação pública – irá assentar, de acordo com o programa do concurso já publicado, num modelo de avaliação que abrange, além, naturalmente, do fator preço, um conjunto de fatores – ali genericamente agrupados sob a designação “qualidade” – relativos aos três segmentos mais relevantes da linha em causa: a Estação de Campanhã, a Estação de Gaia e a nova Ponte rodoferroviária sobre o rio Douro”, explicaram.
Os advogados explicaram que como as pontuações obtidas no fator preço serão ponderadas a 70% e as pontuações obtidas no fator qualidade – que agrega as pontuações obtidas nos três referidos aspetos – Campanhã, Gaia e Ponte – serão ponderadas a 30%, é “fácil compreender que, mesmo perante propostas cujos valores se distanciem consideravelmente, o júri poderá vir a ter uma decisiva discricionariedade na avaliação das propostas no referido fator da qualidade”.
“Ora, quando se observam os 17(!) descritores construídos no modelo de avaliação para se avaliar a “qualidade” do que for proposto pelos concorrentes para as Estações de Campanhã e de Gaia e os 5 (!) descritores construídos no mesmo modelo para avaliar “a qualidade” do que for proposto para a nova Ponte sobre o rio Douro, tem de concluir-se inevitavelmente que, poderá não vir a ser a discricionariedade administrativa do júri a determinar essas pontuações parciais, mas, antes, a total e absoluta arbitrariedade”, acrescentaram.
No total, o projeto do TGV prevê a modernização da estação da Campanhã, duas novas de Vila Nova de Gaia e Coimbra, a adaptação das estações de Aveiro e Leira e ainda o alargamento da estação do Oriente. Vai ainda ser construída uma nova ponte rodoferroviária sobre o rio Douro.
“Com efeito, no caso da qualidade das estações de Campanhã e de Gaia, o modelo de avaliação desdobra-se, em cada uma delas, em 4 subsubfatores (i) qualidade estética e coerência global da solução conceptual; ii) qualidade da solução programática e funcional; iii) integração e articulação com a envolvente, intermodalidade e estacionamento; iv)soluções construtivas), subdividindo-se ainda cada um deles em 4 ou 5 subsubsubfatores. Por seu turno, no que se refere à ponte, são 5 os subsubfatores (i) identidade da Ponte; ii) integração na paisagem; iii) inserção dos acessos em ambas as margens; iv) qualidade do projeto; v) qualidade das soluções construtivas, dos materiais e dos equipamentos), não havendo mais desagregação”, disseram os sócios da Sérvulo.
Duarte Rodrigues Silva e João Amaral e Almeida apontaram ainda que depois de o contrato estar celebrado e a produzir efeitos, nem sempre o Caderno de Encargos publicitado parece trazer a “clareza que se estima ser necessária a projetos complexos”.
“Por outro lado, o estabelecimento de um prazo de caducidade, totalmente compreensível, não é acompanhado da previsão de um prazo para o concedente tomar alguma atitude quanto ao pedido que lhe seja dirigido, o que introduz insegurança jurídica”, referiram.
Os advogados afirmaram ainda ser “economicamente discutível” a previsão de que o valor devido pelas fases de conceção, projeto e construção correspondam a um preço fixado, não revisível, e a ser pago faseadamente a cada trimestre civil e que é “discutível” a afirmação feita a propósito da repartição dos riscos da concessão de que a concessionária não possa invocar o desconhecimento de quaisquer condicionantes de execução do contrato ou imputar qualquer responsabilidade a esse título ao concedente, “quando o quadro jurídico aplicável não parece permitir considerações absolutas dessa natureza”.
Sobre os contratos financeiros e de projeto, José Luís Moreira da Silva defende que se deve saber e conseguir negociar “bem com a banca”, os “contratos para a elaboração dos projetos”, para as “expropriações”, para as “empreitadas”, para a “fiscalização” e para a “manutenção”, enquanto contratos mais relevantes. “De uma boa negociação e ainda melhor execução destes contratos pode advir ganhos importantes ou percas desastrosas”, acrescentou.
O projeto do TGV vai implicar um investimento de milhões e milhões de euros. Só na primeira fase estavam inicialmente orçamentados 2.950 milhões, em 2022, mas face à inflação o custo subiu cerca de 26% para 3.729 milhões de euros: 1.978 milhões para o primeiro troço e 1.751 milhões para o segundo.
“O setor ferroviário nacional necessita deste investimento para superar as insuficiências da infraestrutura atual e a falta de competitividade dos serviços ferroviários, que não encontram resolução apenas com obras de modernização, como as que se encontram em curso na ferrovia nacional, ou com melhorias ao nível da utilização da capacidade da infraestrutura ferroviária”, sublinhou Stéphanie Sá Silva, considerando que o investimento gerará uma mobilização de recursos significativos que terá repercussões em toda a cadeia de valor e será extremamente positiva para a economia portuguesa.
Mas com valores tão elevados implicados é necessário ter cautela para que o projeto não corra mal. Para José Luís Moreira da Silva o fator tempo ou prazo de execução é “primordial”. “Há vários riscos que podem pôr em causa a conclusão dos milestones relevantes, com grandes custos para o projeto. Também é necessário saber imputar à entidade certa os vários riscos do projeto, de forma a repartir o mesmo e não ficar com riscos impossíveis ou muito difíceis de gerir”, referiu.
Já Duarte Rodrigues Silva e João Amaral e Almeida assumem como primordial o planeamento. “Mas é igualmente relevante a previsão de elementos de flexibilidade nesse planeamento: perante um percalço na construção num determinado local, é conveniente que a concessionária tenha agilidade suficiente para que possa continuar os trabalhos noutro local, minimizando ao máximo qualquer perturbação”, sublinharam.
Os sócios da Sérvulo defendem ainda que é muito importante o papel da entidade adjudicante na fiscalização dos trabalhos, “procurando resolver de forma tão célere quanto possível todos e quaisquer sobressaltos que surjam na execução do contrato”. “É igualmente relevante que todas as entidades externas que devam dar pareceres ou autorizações relevantes no previamente ou âmbito da execução dos trabalhos de construção estejam devidamente consciencializadas para colaborar com a concessionária”, acrescentaram.
Várias são as oportunidades que o país pode aproveitar com a linha de alta velocidade. Desde logo, e segundo José Luís Moreira da Silva, um grande investimento e oportunidade para as empresas nacionais, não só aos membros dos consórcios, mas para todas as PMEs “que serão subcontratadas e prestarão serviços e fornecimentos ao longo dos 30 anos de duração inicial do contrato. Mas também a aquisição de know how tão importante nesta matéria”.
“As empresas portuguesas não têm grande experiência em alta velocidade, ao contrário das congéneres espanholas, onde os projetos desta índole se repetem. É uma importante mais-valia para a economia portuguesa”, sublinhou.
Sem prejuízo do benefício ambiental, representando alternativa cómoda e rápida ao transporte rodoviário (de passageiros e de mercadorias) e mesmo aéreo, os sócios da Sérvulo acreditam que o TGV pode incrementar o emprego e a produção de bens e equipamentos a utilizar, com efeito direto na economia regional e nacional.
“Poderá, igualmente, surgir a oportunidade de criação de novas centralidades urbanas em resultado da reformulação de estações ferroviárias e da criação de novas estações, mas estima-se que esta venha fundamentalmente a depender da vontade dos municípios e dos tecidos empresariais das cidades que sejam beneficiadas por este investimento”, referiram Duarte Rodrigues Silva e João Amaral e Almeida.
Já Stéphanie Sá Silva, sócia da DLA Piper ABBC, admite que a construção do TGV permitirá “mais e melhor oferta de serviços” e dará um contributo “decisivo” para tornar o setor do transporte ferroviário nacional mais “eficiente” e “sustentável”.
“Desse ponto de vista, marcará uma mudança de paradigma, já que o investimento em infraestruturas rodoviárias tem sido preponderante em Portugal, estando o país abaixo (em quase metade) da média europeia em termos de densidade de rede ferroviária (de acordo com os dados de 2021 publicados no relatório da IRG-Rail “Eleventh Annual Market Monitoring”)”, referiu.