Regras para fabricar comboios em Portugal ameaçam concurso. CP alega não ter recebido queixas
26/06/2023 06:02 - Sapo Eco
Há praticamente duas décadas que não se produzem comboios em Portugal, por conta do fecho, em 2004, da fábrica da Bombardier, na Amadora. A esperança reacendeu-se quando a CP abriu o concurso para comprar, por 819 milhões de euros, 117 novos comboios, em dezembro de 2021. O ex-ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, fez questão […]

Há praticamente duas décadas que não se produzem comboios em Portugal, por conta do fecho, em 2004, da fábrica da Bombardier, na Amadora. A esperança reacendeu-se quando a CP abriu o concurso para comprar, por 819 milhões de euros, 117 novos comboios, em dezembro de 2021. O ex-ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, fez questão de valorizar a produção nacional e de afirmar: “a pontuação é tanto maior quanto mais tarefas forem feitas em Portugal; no limite, a totalidade do fabrico”. Em 2023, o seu sucessor, João Galamba, foi ainda mais longe e fez questão de anunciar: “na pior das hipóteses teremos uma fábrica em Portugal“.
Entre os 100 pontos disponíveis, há 15 que servem como “bonificação do fabrico e da montagem em Portugal”, segundo o caderno de encargos. O critério de avaliação, no entanto, está a levantar dúvidas, pondo em perigo o concurso. A transportadora defende-se e afirma que nenhum concorrente apresentou qualquer queixa até agora.
Para obter a pontuação máxima, os concorrentes têm de se comprometer em fabricar e montar em Portugal os principais componentes de pelo menos 100 das novas automotoras elétricas e ainda incluir, em pelo menos 5% da equipa de operários, jovens à procura do primeiro emprego, desempregos de longa duração, pessoas com mais de 50 anos e ainda elementos com algum tipo de deficiência.
O critério viola os artigos 34 e 36 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, no entender do especialista Pedro Telles. “Um potencial operador económico que desejasse concorrer utilizando a sua capacidade de fabrico baseada noutro estado-membro da UE, por exemplo, só poderia competir em 85% da pontuação total disponível, pois seria classificado como zero no critério de fabrico/montagem. Além disso, seria classificado com zero mesmo se cumprisse o requisito dos recursos humanos especiais”, escreveu o advogado num texto publicado em 14 de junho. “O único propósito é garantir que a atividade económica associada ao contrato seja desenvolvida em Portugal em detrimento dos outros estados-membros”, acrescenta.
O professor associado na escola de negócios de Copenhaga (CBS, na sigla original) antecipa que, mesmo que seja adjudicado o contrato, o Tribunal de Contas acabará por chumbar o documento. Pedro Telles alega que também está em causa a violação do princípio da concorrência. “O procedimento foi naturalmente desenhado para restringir artificialmente a concorrência. A sua intenção é tornar competitivas apenas as propostas que incluam um grau de fabrico/montagem feito em Portugal”, sustenta.
A posição é corroborada por Jane Kirkby, especialista em contratação pública. “Uma empresa sediada em Itália, que forneça comboios fabricados, construídos e montados em Itália, parte para a avaliação das propostas com um limite de pontuação máxima de 85%, enquanto uma empresa que se comprometa com a construção de uma fábrica de comboios em Portugal já pode almejar os 100%”, exemplifica a sócia da Antas da Cunha Ecija. “Ou seja, o Governo está a privilegiar o desenvolvimento de uma atividade económica em território português, colocando um obstáculo à importação de bens a partir de outros Estados Membros, o que consubstancia uma medida cujo efeito é limitar o valor ou o volume de importação de determinados produtos”, detalha.
Para esta advogada, um critério de pontuação como este apenas seria admissível, “por exemplo, se estivesse em causa a aquisição de bens de soberania, como material militar, em que é legítimo que o Estado queira controlar o fabrico e a manutenção do mesmo, sem depender de empresas sediadas em estados com interesses contrários ou diferentes”.
“Compreendo que possa ser difícil para a opinião pública entender como uma empresa pública não possa valorizar ou favorecer operadores nacionais, mas tal possibilidade encontra-se vedada pelo Direito da União Europeia, atento às exigências do mercado interno que obrigam a que não existam entraves, designadamente, discriminatórios à circulação de fatores de produtivos, designadamente quanto às mercadorias”, argumenta Pedro Cerqueira Gomes, também especialista nesta área. O sócio da Cerqueira Gomes & Associados compara mesmo esta situação com a “grande resistência da opinião pública” à decisão de o Tribunal Geral da UE de anular as ajudas Estado alemão à Lufthansa durante a pandemia.
O concurso para a compra dos 117 novos comboios captou o interesse inicial de seis empresas: o consórcio luso-francês DST/Alstom, a suíça Stadler e a espanhola CAF chegaram até à última fase; de fora da lista final ficou a dupla germano-espanhola Siemens/Talgo; os chineses da CRRC e os japoneses da Hitachi não passaram da fase preliminar.
Perante esta diversidade de candidatos, José Luís Moreira da Silva entende “não há qualquer ilegalidade nem violação do Código da Contratação Pública e das normas europeias”. O sócio da SRS Legal considera que uma alegada ilegalidade “parte de um pressuposto errado que as normas do concurso aqui em causa obrigariam o contratante a fabricar e/ou a montar os comboios em Portugal. Ora o que o concurso faz é apenas pontuar mais favoravelmente quem o fizer, mas não exclui quem o não fizer”.
O líder do departamento Administrativo e Contratação Pública da SRS Legal também “qualquer operador económico seja de que nacionalidade for, pode apresentar proposta como bem entenda, apenas sabe que pode ver a sua proposta valorizada em até 15% se fabricar ou montar parte dos comboios em Portugal. Esta regra é igual para qualquer operador económico. Veja-se que a regra nem sequer obriga a fabricar ou a montar a totalidade do comboio em Portugal, mas apenas parte dos seus componentes”. “A solução encontrada é viável para recomeçar a haver know-how em Portugal no fabrico de comboios, como antigamente”, complementa o advogado.
A CP alega que ao longo do concurso “nenhum dos candidatos ou concorrentes suscitou qualquer questão relacionada com o tema“. Ao ECO, fonte oficial da transportadora defende estar “empenhada em cumprir toda a legislação em vigor, garantindo um processo transparente e justo”. Para apoiar juridicamente na elaboração do caderno de encargos, a empresa pública contratou mesmo uma sociedade de advogados.
Resta saber se o concurso para os 117 comboios vai até ao final ou se será necessário regressar à casa de partida. O consórcio DST/Alstom é o favorito, pois obteve a melhor classificação na avaliação prévia das últimas propostas, segundo o jornal Público (acesso pago). Falta a decisão final do júri e o sinal verde do conselho de administração da CP.