Em Barcelona, o futuro com vista para uma fábrica de comboios em Portugal
08/06/2023 06:04 - Sapo Eco
É a cerca de 20 quilómetros de Barcelona que se encontra uma das principais fábricas de comboios da Alstom na Europa. Estamos em Santa Perpètua de la Mogoda, localidade que desde 1994 acolhe esta unidade fabril, a 10 minutos a pé da linha do comboio. Com mais de 1.000 trabalhadores, o complexo conta atualmente com […]
É a cerca de 20 quilómetros de Barcelona que se encontra uma das principais fábricas de comboios da Alstom na Europa. Estamos em Santa Perpètua de la Mogoda, localidade que desde 1994 acolhe esta unidade fabril, a 10 minutos a pé da linha do comboio. Com mais de 1.000 trabalhadores, o complexo conta atualmente com 68.000 metros quadrados, num terreno total de 360.000 metros quadrados.
O cenário faz lembrar Guifões, freguesia do concelho de Matosinhos a uma dezena de quilómetros do centro do Porto e local onde o fabricante francês pretende instalar uma fábrica de comboios caso ganhe o concurso para fornecer 117 automotoras elétricas à CP até ao final desta década.
Perto de Barcelona, o futuro está à vista para o regresso da indústria ferroviária portuguesa, que há duas décadas não sabe o que é um comboio novo a sair da linha de montagem. Em Santa Perpètua, o emprego ganhou tração nos últimos três anos, com a contratação de 500 pessoas para a fábrica, levando o número de operários a ultrapassar os 1.000 já em 2023. Até ao final do ano há ainda planos para entrarem mais 150 pessoas. Também nos últimos três anos, a fábrica contribuiu com 150 milhões de euros em exportações para a economia espanhola.
O reforço dos quadros não contribui apenas para responder às encomendas. A empresa alega que por cada trabalhador direto, são criados indiretamente mais 2,5 empregos. Em Portugal, a empresa tem em vista a criação de 300 empregos diretos, pelo menos para fazer 117 novos comboios.
Demora alguns minutos até perceber que se trata de uma verdadeira fábrica de comboios – e não só. Ao passarmos os portões, reina o silêncio e não há sequer um cheiro que se aproxime de uma metalomecânica. A Alstom vive um dos melhores momentos das últimas décadas, ganhando contratos para fornecer elétricos, veículos metropolitanos e comboios pesados (suburbanos, regionais e de longo curso) para todo o mundo. O transporte sobre carris voltou a ganhar protagonismo pelas obrigações ambientais e, na União Europeia, pela pressão comunitária para regressar à ferrovia.
A fábrica de Santa Perpètua é muito mais do que um mera linha de montagem de peças. O ECO pôde testemunhar quão diferente é produzir um comboio em comparação com um camião ou um automóvel ligeiro. O processo leva muito mais tempo e é muito mais complexo. A unidade de Barcelona tem capacidade para desenhar as peças, fazer todas as soldaduras necessárias para construir a carroçaria em alumínio e em aço, instalar cada um dos fios elétricos, colocar os equipamentos de ventilação e de ar condicionado, pôr portas e ainda fazer testes na linha.
Tal apenas é possível porque a fábrica ultrapassou as tormentas da década passada a partir das linhas das exportações. “Isto ajudou-nos a sobreviver quando o mercado espanhol esteve parado”, recorda a líder da fábrica, Cristina Andériz. Na década de 2010, a Alstom começou a produzir material circulante para outros países.
Por exemplo, no dia da nossa visita, era possível acompanhar o corte de placas enormes de alumínio para a parte lateral de uma carruagem dos futuros 34 comboios regionais dos Caminhos-de-Ferro do Luxemburgo (CFL). Numa das partes, as tiras de alumínio no chão denunciavam a localização dos moldes. Os cortes tiveram de ser muito precisos para depois haver o encaixe das portas e das janelas. A máquina de corte é operada a partir de um comando exterior. Há quatro máquinas deste género só nesta fábrica, num processo que é muito intensivo e minucioso.
Não muito longe dali foi criada uma sala de formação com impressoras 3D, mesas de trabalho e uma máquina de soldar muito especial. A placa de alumínio foi substituída por uma peça de plástico, da pistola não sai nada e a viseira tem um dispositivo de realidade aumentada. A partir da lógica dos videojogos, a ideia é formar novos especialistas em segurança e sem ter de gastar 20 euros por cada placa de alumínio. O projeto Awatar também ajuda a reduzir o tempo de formação sem perder a qualidade.
Há mais eletrónica um pouco mais adiante. Há uma máquina nova em folha que permite a soldadura automática da carroçaria, o que também ajuda a reduzir os preços de produção. Mais ao lado, as várias partes da carroçaria dos futuros comboios do Luxemburgo começam a ser unidas com a ajuda de uma roda gigante. Estamos numa zona conhecida como a “catedral”, onde são emitidos raios laser para garantir que não houve erros de montagem e que o comboio pode seguir para a fase da pintura.
Note-se que, entre os pavilhões, é possível reparar que estão no exterior, protegidos por plástico, conjuntos de bogies (estruturas que ligam a carroçaria ao carril através de eixos e de rodados). Alegadamente há falta de espaço dentro das naves para que possa guardar este material.
Ao entrarmos noutra secção da fábrica, podemos ver as estações de montagem, que estão divididas em várias linhas. Por exemplo, há comboios para o Luxemburgo a serem totalmente preparados ao lado de veículos para o metro de Singapura (parecidos com os do metro de Londres) e de elétricos que irão circular em Frankfurt.
Nesta etapa, o tempo de montagem mede-se em dias conforme cada uma das secções: para o metro de São Domingo (Panamá), são necessários cinco dias só para instalar todos os equipamentos de ar condicionado e de ventilação de todo o comboio; no caso dos elétricos de Barcelona, bastam dois dias; o futuro comboio do Luxemburgo necessita de praticamente uma semana só para serem instaladas as portas e outros sistemas. Há ainda outras particularidades, como o facto de os fios poderem ser instalados no topo ou na base das carruagens conforme os pedidos. Em números, a fábrica de Santa Perpètua pode produzir 340 carruagens por ano e 110 elétricos por ano.
Apesar da complexidade do processo, há flexibilidade suficiente para os pedidos corresponderem às necessidades dos operadores e às especificidades das linhas. A Alstom está a fabricar 201 novos comboios para os serviços suburbanos de Madrid e de Barcelona da Renfe, em que os bogies vão ficar entre as carruagens, a pedido da própria Renfe. No caso do Luxemburgo, há composições com dois andares e outras de apenas um piso. Também há hipótese de fabricar comboios que circulem com bitola ibérica ou bitola europeia, podendo ter eixos variáveis caso haja parceria com outros fabricantes que tenham a tecnologia necessária para se adaptar a diferentes distâncias entre carris.
A fábrica contempla ainda uma linha de testes com 1,2 quilómetros, devidamente eletrificada e com três carris na linha, para adaptar-se às diferentes bitolas. A catenária também pode suportar diferentes voltagens. Na visita, vimos um dos futuros comboios do Luxemburgo.
A empresa está ainda a fazer um esforço para que o fabrico de material ferroviário seja mais amigo do ambiente: há planos para a instalação de painéis solares, que poderão suprir 25% das necessidades de energia, e a eletricidade fornecida tem origem renovável. Os comboios são transportados para os fabricantes também por comboio. No entanto, as peças ainda chegam de camião e os trabalhadores deslocam-se de carro ou nos autocarros da empresa, mesmo com uma estação de comboios com serviço suburbano a 10 minutos a pé.
Caso a Alstom vença o concurso para fornecer 117 novos comboios para a CP, Portugal ganhará uma fábrica de comboios porque o caderno de encargos premeia a incorporação nacional. Sem esse benefício, a fábrica de Santa Perpètua seguramente poderia ajudar a renovar o material circulante da empresa pública ferroviária de Portugal. Não falta espaço para a construção de novas naves e de linhas de montagem.
O jornalista viajou a convite da Alstom Portugal.