Comboio europeu cruza 26 países sem despertar o interesse dos cidadãos
09/10/2021 14:00 - Dinheiro Vivo
20 mil quilómetros e 35 dias depois, o Connecting Europe Express terminou uma viagem histórica entre Lisboa e Paris. Mas até ao final da década há muito a fazer para que haja uma união ferroviária na Europa.
No ano europeu do Transporte Ferroviário, a Comissão Europeia pôs a circular um comboio durante 35 dias para tentar mostrar o potencial das viagens sobre carris no Velho Continente. A viagem experimental começou em Lisboa e terminou em Paris, na passada quinta-feira, depois de ter percorrido 26 países.
A falta de um regulamento comum para homologar a circulação dos comboios em toda a região e os diferentes sistemas de sinalização e de segurança, foram os problemas que mais saltaram à vista nesta viagem que cruzou os diferentes Estados-membros da União Europeia (UE).
A cerimónia de chegada do Connecting Europe Express (CEE) à Gare de l'Est, em Paris, foi feita junto à linha e reservada a convidados e jornalistas. Depois de ser tocado o hino da Europa e dos discursos protocolares, praticamente não foi possível aos cidadãos visitarem o interior do comboio.
Depois de ter partido de Lisboa com seis carruagens só com lugares sentados, tudo mudou assim que o comboio europeu passou a fronteira entre Espanha e França.
A partir de Hendaia e até ao final da viagem, mais de 60 locomotivas rebocaram seis composições: a carruagem-conferência da francesa SNCF; a carruagem de segunda classe com espaço para sete bicicletas da alemã DB; a carruagem panorâmica usada pelos suíços da SBB; a carruagem-bar dos italianos da FS; e ainda a carruagem-cama dos austríacos da OBB.
A meio da viagem, circulou ainda o terceiro comboio, entre Estónia e Lituânia. A automotora diesel foi cedida pela transportadora da Lituânia (LTG).
A carruagem panorâmica foi sempre a mais concorrida e mostrou a falta de interesse dos cidadãos no comboio europeu: era quase sempre a única composição ocupada.
A bordo do comboio do primeiro ao último dia esteve Herald Ruijters. Em jeito de balanço, o responsável de investimentos em transportes inovadores da Comissão Europeia considera que "foi uma bela experiência fazer o comboio europeu. Testemunhámos grande entusiasmo com a visita ao comboio para nos cumprimentarem e tiraram-se muitas fotografias quando passámos. Acho que chegámos às pessoas", acredita o dirigente ao Dinheiro Vivo.
O Connecting Europe Express fez 200 paragens, algumas apenas técnicas. Outras serviram sobretudo para troca de cumprimentos e de galhardetes e assinar o "livro de honra". Os momentos também foram aproveitados para a visita das escolas das localidades europeias onde o comboio ia passando.
Políticos a fazer a viagem é que foi raro, o que explica o desinteresse da imprensa nesta viagem. A própria comissária europeia dos Transportes, Adina Valean, só deveria fazer a viagem no último dia, entre Estrasburgo e Paris, mas, à última hora, desmarcou.
Restaram as fotografias e vídeos feitos ao longo do percurso pelos fãs dos comboios, conhecidos como trainspotters.
Herald Ruijters também salienta as "várias aprendizagens" ao longo da viagem. "Em alguns casos, não vimos coisas boas, como mudar tão frequentemente de locomotiva e de tripulação. Também temos de apostar em material interoperável", lembrou.
A organização desta iniciativa quis replicar a experiência real de um viajante que queira circular atualmente de comboio por vários países, em vez de mostrar como poderia ser a viagem se fosse usada toda a tecnologia disponível na ferrovia: já existe material que pode circular em qualquer bitola (distância entre carris) e que pode ser alimentado por eletricidade ou por diesel, e que facilitaria a ligação por comboio entre os vários países europeus.
Mas continuariam por resolver outros problemas, como a harmonização dos sistemas de sinalização e de segurança e a dificuldade de homologação do mesmo material circulante para toda a União Europeia, acrescentou Ruijters.
Esta última questão gerou mesmo a situação mais caricata da viagem. Na passagem pela Dinamarca, todos os passageiros tiveram de refugiar-se na carruagem com compartimentos para descansar: era a única composição que cumpria as regras locais, diferentes dos restantes 26 países da União Europeia. As outras cinco carruagens tiveram de passar pelo país sem passageiros para evitar problemas com as autoridades locais.
Mesmo assim, não faltou um momento para mostrar a verdadeira cooperação europeia. Em Zagreb, partiu-se um dos cabos da carruagem francesa, com chassis igual ao dos comboios intercidades portugueses. A composição teve de ser retirada da Croácia para ser reparada em Sófia. Foi na capital búlgara que a unidade voltou ao comboio europeu.
Mais exemplos como este têm de existir para haver uma união europeia sobre carris. Ruijters deixa um recado a Bruxelas: "temos de dar um salto gigante na interoperabilidade até 2030, com muitos investimentos e legislação que obrigue os Estados-membros a investirem seriamente na ferrovia. Caso contrário, não poderemos cumprir o pacto ecológico".
*O jornalista viajou a convite da Comissão Europeia