Alta velocidade portuguesa pode ficar só para Espanha
24/10/2022 06:05 - Sapo Eco
A linha de alta velocidade entre Porto e Lisboa pode arrancar apenas com comboios operados por Espanha. O adiamento do perdão à dívida histórica da CP para 2023 atrasa a compra e chegada de material preparado para circular na nova linha. A situação já está a gerar mal-estar entre os ministérios de Pedro Nuno Santos […]
A linha de alta velocidade entre Porto e Lisboa pode arrancar apenas com comboios operados por Espanha. O adiamento do perdão à dívida histórica da CP para 2023 atrasa a compra e chegada de material preparado para circular na nova linha. A situação já está a gerar mal-estar entre os ministérios de Pedro Nuno Santos e de Fernando Medina, que tutelam a transportadora pública ferroviária, sabe o ECO.
Em vigor desde o final de junho, o Orçamento do Estado para 2022 estabeleceu uma verba de 1,81 mil milhões de euros para reduzir em mais de 80% o passivo da transportadora. A pouco mais de dois meses do final do ano, a operação mal avançou e o Governo prepara-se para pedir uma nova autorização ao Parlamento para injetar capital na CP, agora no valor de 1,899 mil milhões de euros, escreveu no sábado o jornal Público.
O perdão da dívida à CP é fundamental para a empresa pública ter material capaz de circular na nova linha entre Porto e Lisboa, com velocidade máxima de 300 km/h. No Orçamento do Estado para 2023, está prevista a autorização para o lançamento do concurso para a compra de 12 novos comboios de alta velocidade.
“A CP prevê ainda o lançamento, em 2023, de concurso para a aquisição de 12 comboios de alta velocidade no valor de 336 milhões de euros. Este investimento deverá ser feito com fundos próprios da empresa, viabilizado pelo saneamento da dívida histórica da mesma”, assim está escrito no documento.
Os comboios de alta velocidade vão fazer parte do serviço comercial da CP, pelo que não podem ser comprados com financiamento do Estado. A empresa tem de recorrer a fundos próprios para pagar a encomenda.
A compra de comboios é um processo moroso e que leva vários anos. Por exemplo, a compra de 22 novos comboios regionais foi aprovada pelo Governo em setembro de 2018 mas apenas em outubro de 2021 é que a CP finalmente pôde fazer a encomenda aos suíços da Stadler. As primeiras unidades só vão chegar lá para 2025 ou 2026, ou seja, mais de sete anos depois da primeira etapa.
O concurso público internacional demorou praticamente um ano; depois, o processo esteve mais 10 meses sob impugnação nos tribunais. Entre outubro de 2020 e de 2021, o contrato esteve sob análise do Tribunal de Contas, que depois aguardou esclarecimentos adicionais da transportadora.
O processo de compra de comboios para a alta velocidade não está imune a estes problemas. Ou seja, se o concurso público ainda for lançado em 2023, não é expectável que as novas composições cheguem à CP antes de 2030.
Antes disso, já no final de 2028, deverá estar pronta a primeira fase da nova linha entre Porto e Lisboa, entre a cidade Invicta e Soure. A partir dessa altura, será possível viajar entre as duas cidades em 1 hora e 59 minutos (sem paragens). Em 2030 – cumprido o calendário apresentado pela Infraestruturas de Portugal – Porto e Lisboa ficarão a 1 hora e 19 minutos de distância.
A nova linha Porto-Lisboa será construída em bitola ibérica, facilitando a ligação com a restante rede ferroviária nacional. Ora, a bitola ibérica apenas é utilizada nas redes ferroviárias de Portugal e Espanha, com CP e Renfe a serem as operadoras estatais dos respetivos países.
Do lado da CP, o comboio topo de gama é o Alfa Pendular, com velocidade comercial máxima de 220 km/h. Do lado da Renfe, a partir de 2023 haverá um comboio de alta velocidade, o Avril, para circular na linha entre Ourense e Santiago de Compostela a 300 km/h e em bitola ibérica. Ou seja, Espanha pode desarmar completamente a concorrência de Portugal e do resto da União Europeia, onde domina a bitola europeia e são raros os comboios de bitola variável.
A operação de ‘limpeza’ da dívida da CP depende da autorização da Direção-Geral da Concorrência da Comissão Europeia (DG Comp), adiantou em maio o ministro das Finanças, Fernando Medina. A tutela tem de provar que a dívida anulada é anterior à liberalização do mercado.
“É da responsabilidade de cada Estado-membro verificar de que forma uma medida que envolva ajuda do Estado necessita de ser notificada à Comissão Europeia para avaliação e aprovação”, refere fonte oficial da DG Comp. No entanto, o ECO sabe que ainda não deu entrada qualquer pedido do Estado português.
O Ministério das Finanças é o maquinista deste processo mas tem-se mantido em silêncio. Fonte oficial do gabinete de Fernando Medina não respondeu às perguntas sobre o tipo de negociações que têm decorrido. E também não há esclarecimentos do Ministério das Infraestruturas e da Habitação, que também tutela a empresa.
A situação começa a gerar desconforto dentro do Governo: defende-se que não é necessária qualquer autorização por parte da DG Comp; basta uma comunicação formal à concorrência europeia. No passado, o Estado assumiu a dívida histórica da Carris (Lisboa) e da STCP (Porto, Gaia, Gondomar, Matosinhos, Valongo e Maia) antes de estas empresas terem passado para os municípios. No caso da Carris, a transportadora passou para a câmara de Lisboa enquanto Fernando Medina liderava o município.
É necessário recuar várias décadas para se perceber como a CP chegou a 2.132 milhões de euros de dívida. Apenas desde junho de 2020 é que a única transportadora do Estado com cobertura de norte a sul é compensada por prestar serviço em 15 distritos. Antes disso, a empresa teve de contrair dívida para que os comboios chegassem às estações, mesmo antes do 25 de abril, quando era uma empresa privada.
Já depois da Revolução, as receitas de bilheteira não pagavam sequer 40% da despesa e as indemnizações compensatórias também não foram suficientes, o que acelerou a dívida histórica. Em 2011, quando a troika chegou a Portugal, o passivo da CP era de 4,1 mil milhões de euros. A partir desse ano, a dívida da empresa passou a ser contabilizada nas contas do Estado (passou a integrar o perímetro) e a tutela financeira foi transferida para o Ministério das Finanças.
Perdida a autonomia financeira, a transportadora começou a ter de pedir sempre autorização junto do Governo para as despesas mais variadas, como a compra de rodados para os comboios.
Desde 2015, os sucessivos aumentos de capital e o reembolso de um empréstimo à banca de 500 milhões de euros reduziram o passivo para praticamente metade. No final de 2021, dos 2,132 mil milhões de dívida, 83% são devidos ao próprio Estado, através da Direção-Geral do Tesouro e Finanças.
Enquanto a situação não se resolve, a CP é obrigada a pagar juros anuais aos seus credores e está limitada na gestão da sua contabilidade: “por se aguardar a concretização do saneamento da dívida histórica da empresa, os empréstimos contratados, bem como as sucessivas prorrogações do pagamento do serviço da dívida dos empréstimos do Estado, têm sido feitos em prazos inferiores a 1 ano”, escreve a companhia no relatório e contas de 2021.
A demora na reestruturação da dívida foi o principal motivo para a saída de Nuno Freitas da CP, em 1 de outubro de 2021, a menos de três meses do final do mandato. À data, o gestor considerava que tinha concluída a missão que tinha, mas logo umas horas depois, Pedro Nuno Santos deixava perceber as verdadeiras razões.
“Conheço as razões do eng. Nuno Freitas há muito tempo“, disse o ministro, “é compreensível o desalento” do gestor e “se dependesse de mim, estava resolvido“. Os desabafos de Pedro Nuno Santos tinham um alvo direto, o ministro das Finanças, João Leão, que tinha a tutela conjunta da CP com o Ministério das Infraestruturas. “Há um momento em que nós próprios nos fartámos”, atirou o ministro.
Semanas mais tarde, o ex-presidente da CP acabaria por assinalar que era “imperativo concretizar o saneamento da dívida histórica, porque esse é o primeiro passo” para poderem “tirar a CP do perímetro orçamental do Estado e a CP poder ser gerida da mesma forma que é gerida qualquer empresa da sua dimensão”.
Em 2022, já depois da saída de João Leão do Ministério das Finanças, Pedro Nuno Santos depende agora de Fernando Medina — apontado como adversário na luta para suceder a António Costa na liderança do Partido Socialista — e de Bruxelas para finalmente resolver o problema histórico da CP. Só assim a transportadora poderá preparar-se para o futuro e concorrer com as grandes empresas ferroviárias internacionais.