Centenário da chegada do comboio a Lagos é oportunidade para discutir a ferrovia do Algarve
29/07/2022 05:58 - Público
“A ‘cidade Algarve’ tem meio milhão de habitantes e precisa de uma ferrovia de carácter urbano no cerne do seu sistema de transportes”, diz Eduardo Zúquete.
Foi em 29 de Julho de 1922 que o primeiro comboio chegou a Lagos, a última localidade algarvia a ser bafejada pela tecnologia que desde o século XIX revolucionava os transportes no mundo inteiro.
O caminho-de-ferro chegou a Faro em 1889 e por aí se quedou antes de avançar a conta-gotas para Sotavento e Barlavento. Chegou a Vila Real de Sto. António 17 anos depois, em 1906. De Tunes começou-se a construir um ramal que chegaria a Algoz logo em 1899, mas a linha por pouco não morria na margem esquerda do Arade, onde em 1903 se construiu uma estação provisória para servir Portimão. A construção da ponte demoraria sete anos e nela foi empregue betão armado nas fundações, uma tecnologia que estava a ter uma crescente aplicação em Portugal. O comboio chegou finalmente a Portimão, mas só apitaria em Lagos em 1922.
A efeméride é assinalada nesta sexta-feira pela Câmara de Lagos com várias actividades, incluindo um colóquio sobre o passado, o presente e o futuro da ferrovia no Algarve, que contará com a presença dos vice-presidentes da CP e da IP, respectivamente, Pedro Moreira e Carlos Fernandes (as duas empresas estão com as suas administrações em gestão corrente depois da saída dos seus presidentes).
Eduardo Zúquete, ex-director do Gabinete do Plano Director da CP e investigador sobre o transporte ferroviário, que é também um dos oradores do evento de hoje, considera que a linha do Algarve deveria ser o eixo vertebrador do sistema de transportes da região, usada sobretudo para as deslocações frequentes. Mas lamenta a oportunidade perdida que está a ser a muito modesta modernização daquela via férrea, que não contempla o aumento da sua capacidade nem aumentos de velocidade para os comboios.
“Parece-me óbvio que se deveria ter duplicado, pelo menos, o troço central entre Faro e Tunes para aumentar a capacidade da linha”, disse ao PÚBLICO, sublinhando que a orografia permitiria esse investimento com relativa facilidade.
O Ferrovia 2020, o programa de investimentos apresentado em 2016 que pretende modernizar a rede ferroviária nacional, só contempla para o Algarve a simples electrificação da via férrea. O projecto já deveria estar concluído, mas só no mês passado é que a obra foi adjudicada entre Tunes e Lagos.
O também antigo professor de Transportes da Academia Militar, diz que a velocidade máxima de 90 Km/h que a linha permitirá depois da intervenção programada lhe parece muito baixa. “Com quase 500 mil residentes e graças ao encurtamento das distâncias, o Algarve perfila-se hoje como a terceira cidade do país, depois de Lisboa e Porto. Uma cidade singular, que se alonga por cerca de 150 quilómetros, que carece de ter uma via férrea de carácter urbano no cerne do seu sistema de transportes, coisa que só se consegue com via dupla, velocidades de topo da ordem dos 140 quilómetros por hora e altas frequências, como sucede, por exemplo, nos Países Baixos”. Comboio regional está ultrapassado
Para Eduardo Zúquete, “o tempo do caminho-de-ferro regional no Algarve está ultrapassado, mas os investimentos programados, ao não preverem rectificação de traçados e aumento das velocidades, apontam ainda para esse modelo”.
Um modelo que insiste em realizar comboios regionais (com paragens em todas as estações e apeadeiros) entre Vila Real de Sto. António e Lagos, mas com um inexplicável transbordo em Faro, o que desincentiva o uso do modo ferroviário. A viagem entre as duas extremidades demora mais de três horas.
Além dos tempos de percurso longos (mas que em certos troços podem ser mais rápidos do que a EN125 em época alta), o conforto não é o melhor pois a frota da CP no serviço regional algarvio é composta por automotoras a diesel muito antigas. E que têm a particularidade de avariar frequentemente.
A electrificação em curso deverá resolver parcialmente estes problemas, sobretudo depois de chegarem as automotoras novas que a CP encomendou à Stadler, algumas das quais estão destinadas à linha do Algarve.
Mas o futuro da ferrovia na região está ainda por definir. Manuel Tão, professor da Universidade do Algarve, diz que “causa grande perplexidade constatar-se que se fala de um estudo para a introdução de um BRT (autocarro guiado) entre o aeroporto e as cidades de Faro e Olhão, quando na verdade o que já deveria estar em cima da mesa seria a ligação ferroviária ao Aeroporto Internacional de Faro, conjugada com a travessia ferroviária do Guadiana, tanto mais que a inexistência de um aeroporto na província de Huelva é uma oportunidade de negócio ímpar para uma extensão oriental do hinterland aeroportuário do Algarve”.
O também doutorado em Economia de Transportes entende que a ligação ferroviária ao aeroporto deverá ser uma prioridade e que a mesma terá de servir o Campus de Gambelas da Universidade de Faro. Alerta também para a necessidade de retomar a ligação ferroviária do Algarve ao Alentejo “absurdamente interrompida em 2012, dado que ambas as regiões apartadas entre si carecem de escala e profundidade territorial”. Chegada a Lagos foi o derradeiro episódio de expansão ferroviária tardia do Algarve
“A chegada da Ferrovia no Algarve em 1889 significou a entrada do Algarve no séc. XIX, a escassos 12 anos do final do século. A chegada a Lagos em 1922 foi o derradeiro episódio de expansão ferroviária tardia na região”. Manuel Tão diz que o Algarve até 1889 (quando abriu ao tráfego Amoreiras-Faro) estava dependente da ligação marítima de cabotagem Faro - Lisboa, como se uma ilha fosse, para se ligar à capital e ao resto do país.
“Até outras regiões remotas de Portugal, como o Nordeste Transmontano, viram chegar o transporte mecanizado antes do próprio Algarve ter tido semelhante oportunidade, o que traduz bem uma debilidade política histórica da região do Algarve em impor-se no todo que deveria ser a coesão nacional”, prossegue.
A chegada do comboio ao Algarve representou assim a integração da região num só mercado nacional, o que para este investigador significa que a ferrovia cumpriu bem o seu papel nestes últimos cem anos, “sobretudo se pensarmos que a história do Algarve de mais de metade de um século, não está ligada ao turismo, mas antes à agricultura, à pecuária e às pescas”.
Manuel Tão considera que “o subinvestimento ferroviário no Algarve nas últimas décadas não difere daquele que ocorreu em outras partes de Portugal, mas torna-se mais acutilante atendendo à história recente do último meio século algarvio, onde o ritmo de transformações económicas do território dificilmente encontra paralelo em outras regiões do país”.